Postado em 08/05/2019 14:42 - Edição: Marcos Sefrin
COZINHANDO SAPOS
Morador de rua na cidade de Chicago
Não se trata de um problema de falta de ferramentas para conter o crescimento da desigualdade social.
Pode-se taxar os super-salários, taxar grandes fortunas, elevar o salário mínimo. Há meios de sobra para conter a escalada da desigualdade social.
É razoável supor que, num país democrático, o governo seja capaz de conter facilmente o crescimento da desigualdade social empregando políticas públicas que redistribuam a renda e desconcentrem a riqueza. O raciocínio é elementar: na medida em que a riqueza se concentra cada vez mais nas mãos de uma ínfima minoria, a vasta maioria da população irá, por meio dos mecanismos de representação democrática, eventualmente reverter a concentração da riqueza exercendo seu poder de maioria eleitoral. Aqueles prejudicados pela crescente desigualdade social poderiam influenciar as políticas públicas, modificando a distribuição dos frutos econômicos e, assim, revertendo a concentração da renda e da riqueza. São suposições razoáveis e, à primeira vista, aparentemente factíveis.
Todavia, essas premissas contrastam fortemente com o que tem ocorrido “mundo real” durante as últimas décadas, pois estão apoiadas numa hipótese pouco realista: a ideia de que todos os cidadãos têm o mesmo poder de influência sobre as políticas públicas. Mesmo nas situações em que a população se posiciona a favor da desconcentração da renda e da riqueza, essa vontade não tem encontrado respaldo na arena política. De um lado, há aqueles que insistem em negar o problema, afirmando que o crescimento da desigualdade social não produz efeitos adversos para a sociedade; de outro, estão aqueles que declaram que nada pode ser feito sobre o assunto, pois os culpados seriam as “forças do mercado”, mecanismos econômicos neutros e impessoais.
Existe uma hipótese importante, disseminada talvez por ingenuidade, ou talvez por ignorância, que procura explicar por que o crescimento da desigualdade social é um fenômeno tão resiliente nas democracias modernas. Essa hipótese supõe que as pessoas não enxergam a desigualdade como um verdadeiro problema social, e, portanto, não dão atenção às políticas públicas que possam modificar a distribuição da renda. Ou seja, imagina-se que as pessoas simplesmente ignoram que a concentração de renda seja um problema digno de receber a devida atenção do poder público.
Contudo, esse pensamento é pueril e pouco informado, dado que uma pesquisa conduzida nos Estados Unidos e realizada para o jornal New York Times, em fevereiro de 2019, aponta que a grande maioria dos votantes crê que a desigualdade social é um problema que deve ser enfrentando pelo governo. Os resultados foram os seguintes: 1) dos que participaram da pesquisa, mais de 60% apoiam a implementação uma taxa de 2% sobre o patrimônio de todos os americanos cuja soma de ativos exceder a 50 milhões de dólares; 2) a maioria apoia a implementação de uma taxa marginal de imposto de renda de 70% sobre as rendas que excederem 10 milhões de dólares por ano; e por fim, 3) a maioria acredita que o governo deve criar políticas públicas que reduzam a desigualdade de riqueza.
Á vista disso, é curioso que o desejo da população norte-americana por uma sociedade menos desigual encontre dificuldades para se concretizar. Esse anseio por uma sociedade mais igualitária contrasta, por exemplo,com a aprovação do projeto “Taxcuts and Jobs Act”, em 2017, que suavizou os encargos tributários de parte da população e de empresas dos Estados Unidos. A particularidade desse projeto repousa no alívio tributário concedido aos mais ricos, que, ao longo do tempo, irão se beneficiar de reduções de impostos mais generosas quando comparadas às diminuições de impostos concedidas aos estratos sociais inferiores. Uma investigação preliminar revelou que, ao contrário do que Donald Trump e alguns economistas pouco habituados com a realidade acreditavam, a diminuição de impostos não aumentou a taxa de investimento, mas, sim, levou ao aumento de recompra de ações pelas empresas beneficiadas.Um processo que, vale frisar, beneficia enormemente aos acionistas, uma “categoria” que costuma pertencer ao 1% mais rico da população.
Um artigo recente publicado na revista “The Economist” jogou um balde de água fria nos argumentos que relativizam os malefícios da crescente desigualdade social. O artigo demonstra que,tanto a hipótese da população não se importar com a desigualdade social, bem como a hipótese de as democracias ocidentais estarem “emperradas” demais para solucionar os problemas sociais, são respostas insuficientes para explicar a escalada da concentração de riqueza.O artigo nota que os últimos tempos foram marcados por uma grande mudança no sentido da política econômica: a distribuição de renda passou a acontecer cada vez mais em favor dos ricos, ao mesmo tempo em que as autoridades públicas passaram a se preocupar cada vez menos com a redistribuição da renda, a despeito do crescimento da desigualdade social.”
A realidade parece demonstrar que, ainda que a população reconheça o problema urgente da desigualdade social, e anseie por mudanças no sentido de atenuar o processo de concentração de renda e da riqueza, os representantes políticos não parecem interessados em lidar com esse “problema”. Diante desse obstáculo, o artigo mencionado sugere que grande parte do problema está relacionado ao seguinte fato: conforme a desigualdade aumenta, cresce também a influência que os ricos têm sobre a política, particularmente sobre a elaboração de políticas públicas que possam conter, ou corroborar para a concentração da renda e da riqueza.
O artigo sugere que o crescimento da desigualdade social tende a aumentar o poder político dos ricos, o que lhes permite “bloquear” a concretização da vontade popular. Por um lado, o poder econômico dos ricos e reflete nas grandes doações e nas contribuições para as campanhas políticas,algo que influi diretamente nos resultados das eleições e na futura elaboração de políticas públicas; e, por outro, o poder econômico dos ricos é capaz de moldar a opinião pública conforme determinados interesses particulares. O financiamento de thinktanks, os investimentos em empresas de publicidade e a propriedade de empresas de jornalismo, por exemplo, representam diferentes maneiras de utilização do poder econômico para moldar as narrativas públicas e direcionar a atenção da população para determinados “problemas”, em detrimento de outros. Trata-se de uma maneira silenciosa e sutil de influenciar o debate público, modificar opiniões e estabelecer “verdades” cuidadosamente selecionadas na consciência coletiva.
Uma investigação conduzida na área metropolitana de Chicago analisou as preferências políticas dos endinheirados para verificar de que modo as suas opiniões diferem das posições políticas do norte-americano “mediano”. Um dos primeiros resultados que merece destaque, é o fato de que os Norte-americanos mais ricos são mais ativos na política quando comparados ao típico cidadão “médio”. Dentre os ricos que participaram da pesquisa, dois terços declararam ter contribuído financeiramente para as campanhas políticas, ao passo que, em comparação ao total da população, apenas 14% dos Norte-americanos declarou ter contribuído financeiramente para candidatos ou partidos. Além disso, os entrevistados foram questionados sobre outro “mecanismo de influência” importante: a possibilidade de “acesso” pessoal aos funcionários do governo. Conforme os dados obtidos, metade dos endinheirados declarou ter contato com funcionários do governo na esfera federal; 40% declarou ter contatado o próprio senador, e 37% tiveram contato com seu próprio representante.Diversos indivíduos, inclusive, se referiram ao seu “contato” pelo primeiro nome, revelando um elevado grau de intimidade com seus “contatos”. Sobre os assuntos tratados nos encontros, um dos entrevistados mencionou: “Eu tenho ações em diversos bancos. Eu estava preocupado com a legislação que ele (o funcionário do governo) estava elaborando que eu acho que pode ser ruim para os bancos.”
A pesquisa ainda traz outros dados interessantes, como a opinião do “andar de cima”sobre os temas que merecem prioridade na agenda governamental. Quando os entrevistados foram solicitados a classificar os problemas do país pelo seu grau de importância, no topo da lista, considerado o problema mais importante, com 32% das respostas, estavam os déficits orçamentários.Por outro lado, apenas 11% dos entrevistados citaram o desemprego e a educação como os problemas mais importantes dos E.U.A. Com relação aos níveis de despesa governamental, outro tema da pesquisa, as preferências dos ricos se inclinaram a favor de cortes na despesa, ao invés da expansão de gastos em subsídios, apoio econômico às outras nações, defesa, saúde, seguridade social e programas de emprego. Sobre o tema“desigualdade”, a pesquisa revelou sinais contraditórios, mas dentro do esperado: 62% dos entrevistados afirmaram que as diferenças de renda nos E.U.A são muito grandes. Porém, 87% dos entrevistados disseram que “não é responsabilidade do governo reduzir as diferenças de renda”, e 83% foram contra redistribuir a riqueza por meio de mais impostos sobre os ricos.
Ainda que o pequeno alcance da pesquisa exija cautela na generalização dos resultados obtidos, sendo necessário realizar uma pesquisa mais ampla para a confirmação dos dados, não há motivo algum para crer que os dados encontrados seriam diferentes no plano nacional. Assim, a pesquisa mencionada joga luz sobre as preferências políticas do “andar de cima” e sugere que elas podem ter grande influência sobre a elaboração das políticas públicas.
Na batalha discursiva sobre os resultados positivos ou negativos que a desigualdade social pode trazer, está ficando cada vez mais difícil justificar os níveis atuais de concentração de renda e da riqueza. Num painel de discussão realizado pelo FMI em 19 de abril de 2019, cuja temática era “Income Inequality Matters”, Christine Lagarde trouxe algumas informações relevantes. De início, Lagarde afirmou que o grande desafio da atualidade é fazer com que o crescimento econômico seja mais inclusivo. Além disso, a presidente do FMI declarou que a desigualdade em níveis extremos prejudica o crescimento, mina a confiança e alimenta as tensões políticas. Pinelopi Goldberg, economista chefe do Banco Mundial, por sua vez, comentou que a desigualdade é, provavelmente, o problema mais grave das economias avançadas no mundo contemporâneo. A economista lembrou que a desigualdade em níveis extremos produz inquietação social, e citou a Revolução Francesa e a Revolução de Outubro como marcos emblemáticos de um cenário desolador no que diz respeito a concentração da riqueza.
As evidências se acumulam há décadas: não há mais como justificar que os patamares atuais de concentração da renda e da riqueza podem ser benéficos para a economia ou para a sociedade. Portanto, cumpre indagar: se não há argumentos sólidos que justifiquem a manutenção dos níveis atuais de desigualdade social, qual é o grande obstáculo que nos impede de transformar essa situação e superar esse grave problema?
Ora, é evidente que o grande óbice para a criação de uma sociedade mais igualitária não está no campo econômico, mas, sim, na esfera política: o entrave está numa correlação desfavorável das forças sociais, que bloqueia qualquer tentativa de criação e implementação de políticas públicas que visem redistribuir a renda e desconcentrar a riqueza. A partir do momento em que a política não responde mais aos anseios da população, o aparato estatal volta a ser um mero instrumento da classe dominante, e a representação democrática não será mais do que um mecanismo inoperante e ineficaz para tocar qualquer tipo de transformação social.
Não se trata de um problema de falta de ferramentas para conter o crescimento da desigualdade social. Pode-se taxar os super-salários, taxar grandes fortunas, elevar o salário mínimo, aumentar os investimentos nos serviços públicos e buscar uma relação mais igualitária da distribuição dos frutos econômicos entre o capital e o trabalho. Há meios de sobra para conter a escalada da desigualdade social.
Em 1789, a sociedade francesa não dispunha de nenhuma das ferramentas ou mecanismos institucionais de que dispomos hoje para conter o avanço da desigualdade social. Mas a humanidade, engenhosa como só ela sabe ser, encontrou em seu momento histórico um instrumento peculiar para garantir a criação de uma sociedade menos desigual. O instrumento utilizado foi a guilhotina.
Recentemente, Johann Rupert, que ocupa a função de “chairman” da Compagnie Financière Richemont– grupo controlador de empresas atuantes no segmento de bens de luxo, particularmente em joias e relógios (Montblanc e Cartier) – declarou estar preocupado com a crescente desigualdade social. Numa conferência do Financial Times realizada em Mônaco, o bilionário confessou que tem perdido o sono imaginando como a sociedade irá lidar com o “desemprego estrutural, a inveja e o ódio” causados pela automatização do trabalho que virá nos próximos anos. Num lampejo de sensatez, o bilionário declara que não é aceitável que 0,1% da população leve todos os “espólios”, algo que, em suas palavras, é injusto e insustentável. “Eu não sei qual é o novo pacto social que teremos, mas é melhor encontrarmos um”, disse o bilionário. A corda é fina, mas Rupert já a sente apertar o seu pescoço. Parte da elite também sente a corda no pescoço, mas se engana pensando tratar-se de uma gargantilha Cartier.
Em sua coluna na Folha São Paulo, Elio Gaspari nos lembrou que o sapo, quando colocado vivo numa panela com água aquecida aos poucos, é incapaz de perceber o aumento da temperatura. Dado que o seu sistema nervoso não reconhece a evolução gradual da temperatura, o anfíbio morrerá cozido, literalmente sem perceber. Num contexto de crescente insatisfação social, descontentamento generalizado com os rumos da democracia e indignação com os privilégios do “andar de cima”, a temperatura da água está cada vez mais quente. Diferentemente do sapo, a elite percebe que a água está esquentando. Contudo, ela ainda pensa que está em sua jacuzzi particular. A história ensina que o cozimento é lento, mas é certo. Ambos terminarão cozidos.
*Tomás Rigoletto Pernías é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituo de Economia da Unicamp
Matéria feita por Tomás Rigoletto Pernías dia 06 de maio de 2019 - Imagem por Garry Knigt/cc
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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