Postado em 30/07/2018 17:58 - Edição: Marcos Sefrin
Altas horas. Insônia, TV. Filme de segunda classe. Exemplo 1. Pequena cidade do interior, nos Estados Unidos. Duas ou três fábricas, mercearias, bancos locais, ranchos no entorno. Gente feliz que bebe cerveja e faz churrasco no jardim, no final de semana. Perto dali, uma área semideserta, base militar discreta. Experimentos atômicos que de repente escapam ao controle. Infectam aranhas, elas crescem adoidadas e começam a comer humanos nos ranchos, acercando-se à cidade. Aparecem os mocinhos. Uma cientista rebelde e um tenente apaixonado lutam para combater os bichos e encontrar antídoto para impedir sua proliferação. Orgasmo final: eles vencem e a cidade retoma sua vida pacata – depois de alguns desaparecimentos, é claro. Ufa! Vamos dormir.
Exemplo 2. Um cenário parecido. De repente, umas estranhas plantas aparecem no contorno da cidade. Na verdade, não são plantas, são alienígenas disfarçados. Curiosamente, são vermelhos. A indústria do cine americano adora enrubescer os monstros. Os aliens começam a engolir humanos, tomando seu corpo. Os novos cidadãos, os possuídos, trafegam agora nos mesmos lugares, Mas são outras pessoas. São alienígenas infiltrados. Aparecem os heróis. Uma bióloga excêntrica e desiludida. Um repórter bêbado do jornal local. Um jovem xerife desconfiado e observador. Depois de vários engolidos e abduzidos, os heróis triunfam. Ufa! Vamos dormir.
Convenientemente assombrados pelo mal irreal e facilmente contornável, podemos nos acalmar e sonhar, desviando nossa atenção das ameaças nada fantasiosas e nada contornáveis do dia. Talvez tenhamos sonhos menos suaves, incomodados, quem sabe, pelos efeitos digestivos de pipoca, cerveja e sorvete, em ciclos repetidos e alternados. Não pelos monstros reais, que aguardam o amanhecer.
Se os males do mundo assim fossem, as pequenas cidades norte-americanas estariam hoje acomodadas nos braços de Hilary ou Kennedys – ou outros mocinhos. Só que não.
São essas mesmas cidades – com 50 ou 60 mil habitantes, algumas um pouco maiores – que agora se defrontam com outras ameaças, aranhas ou plantas carnívoras de novo tipo. São os gênios financeiros das corporações, fechando velhas unidades produtivas, de automóveis ou geladeiras, transferindo-as primeiro para o norte do México ou para Osasco e Pirituba, depois para o sul da China. Deixando no antigo sítio um vazio que não apenas se instala nos prédios, mas nas almas das pessoas. Os prédios ficam vazios. As pessoas, não. Elas buscam um outro enchimento. E encontram. Em outro tipo de aranha ou planta carnívora, aquele bicho que lhes promete o retorno do perdido: America First, Again. O brucutu de topete laranja.
Surpresa entre os mocinhos, que rangem os dentes para o recém-chegado, beneficiário do vazio e da reação furiosa. Mas tardam a perceber que esta resposta rancorosa é apenas o contraponto do vazio que haviam provocado eles próprios, os mocinhos. Eles se recusam a admitir a autoria do mal, porque o repetiriam se preciso fosse. Os globalistas do progresso.
É essa a estória que um observador mesmo distraído pode ler em dezenas e dezenas de reportagens sobre as cidades fantasmas dos Estados Unidos. Detroit, por suposto, é uma estrela maior. Mas dezenas e dezenas compõem a constelação – Janesville, Flint, Youngstown... um inteiro alfabeto, com direito a várias repetições. Os Estados do Meio Oeste são atingidos em cheio – eram o coração da indústria na metade do século XX. Mas o declínio pós-industrial é mais amplo e diversificado. E faz surgir uma literatura em expansão – a trajetória triste e sem perspectiva da chamada white working class, heroína e beneficiária da era dourada da manufatura norte-americana. Não apenas Wisconsin, Michigan, Ohio, Filadélfia. Mas também o Kentucky e Louisiana. Ou toda a “América rural”, vítima de um esvaziamento material mas, também, de um rural brain drain de amplas e profundas consequências. O vazio é preenchido por desalento e vício, ressentimento e raiva crescentes.
É antiga, na análise política, a tentativa de explicar crenças e comportamentos politicos “extremados” e aparentemente contra-factuais, fantasiosos, com a figura psicológica (e psiquiátrica) da paranoia. Os riscos dessa analogia são muitos, mas os recursos heurísticos são inegáveis.
A estratégia paranoica – dos paranoicos e dos que se interessam em engendrá-los – é relativamente simples. Trata-se, primeiro, de gerar narrativas que, ao final das contas, “explicam o caos”, dão sentido às tragédias reduzindo o sentimento de auto-incriminação transferindo as culpas para bodes expiatórios convenientes e convenientemente aumentados em sua força e ameaça. A estratégia define um inimigo, modos de enfrentá-lo, apresenta a possibilidade de uma salvação.
Digamos que a paranoia de vez em quando acerta no alvo. Duas vezes por dia, um relógio quebrado dá a hora certa. Passei muitos anos com a paranoia de que era seguido e monitorado. O diabo é que em boa parte desse tempo isso era verdade... Os paranoicos das pequenas cidades devastadas dos Estados Unidos acreditam em tudo que a ultra-direita diz sobre Hillary ou Obama. Mas... os correios de Hillary, registrando suas conversas com Wall Street, estão longe de “desconfirmar” todas as “calúnias”. E no que podem acreditar aqueles que perderam suas casas hipotecadas, na crise de 2009? Quando o socorro de Obama salvou os bancos e aumentou os prêmios de seus executivos? Ou quando Obama despejou milhões de dólares dos contribuintes para salvar a GM, em um plano de resgate que incluía... a transferência para o exterior dos empregos de quatro de suas grandes fábricas?
Deixando em suspenso o juízo sobre o fundo de verdade das paranoias, o que se deve entender, antes de tudo, é o impacto dessa coisa nas almas dos brutos. Uma vez, em livro memorável, Karl Polanyi comentou:
".. uma calamidade social é basicamente um fenômeno cultural e não um fenômeno econômico que pode ser medido por cifras de rendimentos ou estatísticas populacionais.(...) a Revolução Industrial [foi] um terremoto econômico que em menos de meio século transformou grandes massas de habitantes do campo inglês de gente estabelecida em migrantes ineptos. Todavia, se desmoronamentos destrutivos como esses são excepcionais na história das classes, eles são uma ocorrência comum na esfera dos contatos culturais entre povos de raças diferentes. Intrinsecamente, as condições são as mesmas. A diferença está principalmente no fato de que uma classe social é parte de uma sociedade que habita a mesma área geográfica, enquanto o contato cultural ocorre geralmente entre sociedades estabelecidas em diferentes regiões geográficas. Em ambos os casos o contato pode ter um efeito devastador sobre a parte mais fraca. A causa da degradação não é portanto a exploração econômica, como se presume muitas vezes, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima. O processo econômico pode naturalmente fornecer o veículo da destruição, e quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render, mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica – ela está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência social está inserida. O resultado é a perda do auto-respeito e dos padrões, seja a unidade um povo ou uma classe, quer o processo resulte do assim chamado "conflito cultural" ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de uma sociedade" (A grande transformação – as origens de nossa época)
Matéria feita Por Reginaldo Corrêa de Moraes, dia 29/07/2018 às 09:52 ele é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.
Publicado originalmente no Jornal da Unicamp
Ref.: https://www.cartamaior.com.br
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