Postado em 09/05/2019 10:36 - Edição: Marcos Sefrin
Triste país que Lima Barreto e eu também Barreto continuamos a viver.
Que a ruptura da loucura se faça na sana destruição que 'feito faca, corte a carne de vocês', como diria outro inconformado com os destinos do Brasil, nosso Belchior
Ao republicar Lima Barreto, nosso fantástico cronista do início do Século XX, parece que estamos estabelecendo um “de já-vu” funesto, mas que nos coloca na essência criativa deste nosso criador fantástico “mulato-negro”, como ele se identificava.
Nestes dias de imbecilidade exposta e de mediocridade estabelecida, ler Lima e pensar na lógica do maluco fascista imponderado nos cinco cantos deste país é uma necessidade. Esta crônica poderia ser escrita agora em algum manicômio que “tratasse” nosso imponderável transloucado “Capitão do Mato” feito códice da Res-pública.
Triste país que Lima Barreto e eu também Barreto continuamos a viver. Que a ruptura da loucura se faça na sana destruição que “feito faca, corte a carne de vocês”, como diria outro inconformado com os destinos do Brasil, nosso Belchior. Lima nesta crônica antecipa como um louco de sete palmas pode assumir a presidência de um país de duzentos milhões de almas.
Segue Lima:
“Estes malucos têm cada ideia, santo Deus! Num dia destes, no Hospital Nacional de Alienados, aconteceu uma que é mesmo de tirar o chapéu. Contou-me o caso, o meu amigo doutor Gotuzzo, que me consentiu em trazê-lo a público, sem o nome do doente – o que farei sem nenhuma discrepância.
Havia na seção que esse ilustre médico dirige, um doente que não era comum. Não o era, não pela estranheza de sua moléstia, uma simples mania, sem aspectos notáveis; mas, pela sua educação e relativa instrução. Com bons princípios, era um rapaz lido e assaz culto. Faia parte da Academia de Letras da Vitória, Estado do Espirito Santo, onde residia – como membro extraordinário, em vista ou â vista de vaga, isto é, membro externo, ou de fora, que espera a primeira vaga para entrar. É uma espécie de acadêmico muito original que aquela academia criou e que, embora se preste à troça, lembre cousas de bebês, de cueiros, do Manequinho da Avenida, e outras muito pouco elegantes, oferece, entretanto, efeitos práticos notáveis. Atenua a cabala nas eleições e evita sem-vergonhices e baixezas de certos candidatos. Lá, ao menos, quando há vagas, já se sabe quem vai preenchê-la. Não é preciso mandar organizar um livro, às pressas...
A denominação, na verdade, não é lá muito parlamentar; a academia capixaba, porém, a perfilhou, depois de proposta pela boca de um dos mais insignes beletristas goianos que nela têm assento.
O doente do doutor Gotuzzo, como já disse, era membro de fora da academia capixaba; mas subitamente, com leituras dos “Comentários à Constituição”, do doutor Carlos Maximiliano, enlouqueceu e foi para o hospital da Praia das Saudades.
Entregue aos cuidados do doutor Gotuzzo, melhorou aos poucos; mas tiveram a imprudência de lhe dar, de novo, os tais “Comentários” e a mania voltou-lhe. Como ele gostasse do assunto, o doutor Gotuzzo mandou retirar do poder dele a profunda obra do doutor Maximiliano e deu-lhe a do Senhor João Barbalho. Melhorou a olhos vistos. Há dias, porém, teve um pequeno acesso; mas, brando e passageiro. Tinha pedido ser levado à presença do alienista, pois queria falar-lhe certa cousa particular. O chefe da enfermaria permitiu e ele lá foi ter, na hora própria.
O doutor Gotuzzo acolheu-o com toda a gentileza e bondade, como lhe é trivial:
- Então, o que há, doutor?
O doente era como todo brasileiro, bacharel em direito ou em ciências veterinárias; mas pouca importância dava à carta. Gostava de ser tratado de capitão – cousa que não era nem da defunta Guarda Nacional, sepultada, como tantas outras cousas, apesar da Constituição. Apareceu calmo e sentou-se ao lado do alienista, a um aceno deste. Interrogado, respondeu:
-Preciso que o doutor consinta que eu vá falar ao falar ao diretor.
- para quê? Para que você quer falar ao doutor Juliano?
- É muito simples: quero arranjar um emprego. Dou-me muito com o doutor Marcílio de Lacerda, senador, que foi até quem me fez membro de fora da Academia da Vitória; e ele. Naturalmente, há de se interessar por mim.
- Escreva ao doutor Marcílio que ele virá até aqui.
- Não me serve. Quero ir até lá; é muito melhor. Por isso, preciso licença do doutor Juliano.
- Mas, um caro, não adianta nada o passo que você vai dar.
- Como?
- Você é doente, sua família já obteve a interdição de você – como é que você pode exercer um cargo público?
- Posso, pois não. Está na Constituição: “Os cargos públicos civis, ou militares, são acessíveis a todos os brasileiros. “ Eu não sou brasileiro? Logo....
- Mas, você....
- Eu sei; mas as mulheres não estão sendo nomeadas? Olhe, doutor: mulher, menor, louco, ou interdito, em direito tem grandes semelhanças.
Tanto insistiu que obteve o consentimento, para ir falar ao eminente psiquiatra. O doutor Juliano Moreira recebeu-o com a sua inesgotável bondade que, mais do que seu real talento, é a dominante na sua individualidade. Ouviu o doente com calma, interrogou-o com doçura e respondeu ao pedido dele:
- Por ora, não consinto, porquanto devo antes pedir, a esse respeito, as luzes de um qualquer notável jurídico.”
*Lima Barreto: Toda Crônica. São Paulo: Agir, 2004. A lógica do maluco (p. 450-51)
José Raimundo BARRETO Trindade é professor e cronista da UFPA
Matéria feita por Lima Barreto e José R. Barreto Trindade dia 05/05/2019 11:45
Ref.: https://www.cartamaior.com.br/
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