Postado em 25/08/2019 21:48 - Edição: Marcos Sefrin
A história ocidental criou verdades sob as quais os povos indígenas foram submetidos à dominação política em nome de um Deus e uma religião que não era deles. Já passou a hora de desmistificar essas "verdades".
Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro no ano de 1500. Óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva (1922).
Na América, especialmente na América do Sul, a conversa em torno do estabelecimento da civilização ocidental ainda é referida como “a descoberta do novo mundo”. Mas, a verdade é que, quando os europeus vieram para a América, o continente não era exatamente “novo” e eles também não haviam “descoberto” nada.
Antes do final dos anos 1400, muitos grupos de povos indígenas habitavam a totalidade das terras que hoje chamamos de “continente americano”. Eles tinham suas próprias culturas, suas próprias organizações econômicas, sociais e políticas, suas próprias relações com a espiritualidade e seus próprios costumes e crenças. Eles tinham suas próprias maneiras de estudar e entender o mundo, interagindo com a natureza e adquirindo conhecimento em assuntos como matemática, astronomia e arquitetura. Alguns desses conhecimentos eram ainda mais avançados do que o que veio do "velho continente".
Ainda estamos aprendendo com seus modos de vida para entender melhor a economia, a ecologia e a política atuais. Assim, ao invés de uma "descoberta", devemos nos referir a esse episódio na história da humanidade como um contato mútuo de civilizações, se não um choque de culturas e uma aproximação de formas divergentes de pensar, conhecer e aprender. As primeiras nações que viviam no que chamamos de “continente americano” em português e espanhol ou “as Américas” em inglês, compartilhavam e lutavam por seus territórios, mas também viviam dentro de seus ecossistemas e grupos sociais de acordo com seus próprios valores e modos de saber.
Os povos indígenas eram vistos como “selvagens com práticas desumanas”, e, com essa justificativa, suas terras foram tomadas, seus povos escravizados
A doutrina do descobrimento: a verdade ocidental
A “Doutrina da Descobrimento”, que tem raízes no catolicismo e teve suas origens na bula papal, Inter Caetera, foi publicada em 1493. O documento diz que “em ilhas remotas e desconhecidas… vive um grande número de pessoas que parecem ser ‘suficientemente aptas’ a adotar a fé católica e ‘encarnar’ os bons costumes”. A Espanha presumia, segundo a tradição medieval, que era legal apropriar-se da terra dos não-cristãos, e apoiou essa ideia com a Doutrina do Descobrimento.
Sob essas circunstâncias históricas, os povos indígenas foram submetidos à dominação política em nome de um Deus e uma religião que não era deles. Os povos indígenas eram vistos como “selvagens com práticas desumanas” (Bartolome de Las Casas, 1540), e, com essa justificativa, suas terras foram tomadas, e seus povos escravizados. O melhor dos casos era ser convertidos em “almas purificadas” da fé católica.
“É justo, normal e de acordo com a lei natural que todos os homens probos, inteligentes, virtuosos e humanos dominem todos os que não possuem essas virtudes” (Juan Gines De Sepúlveda, 1534).
“Se eu ocupo algo que considero abandonado, tenho o direito de possuí-lo” foi a lógica da colonização
Eles eram vistos como escravos naturais. Lhes foi imposto como pensar, que deus adorar, como trabalhar, em que língua se comunicar, sob qual código de conduta se comportar e, acima de tudo, a quem servir.
Mais tarde, na América Latina colonial, uma doutrina econômica foi imposta sobre eles e os estados-nações ocidentais foram projetados de acordo com essa doutrina. Regras e leis foram estabelecidas consistentemente com o modo de pensar do colonizador e as leis foram estabelecidas em favor de suas preferências. A posse de bens era garantida de acordo com o que os colonizadores consideravam apenas distribuir, legalizar e privatizar.
A verdade deles
“Se eu ocupo algo que considero abandonado, tenho o direito de possuí-lo” foi a lógica da colonização. Os “exploradores” e missionários ocidentais pensavam que tomar terras “não civilizadas” e pega-las para si era o mandato e designação de Deus. Eles nunca consideraram que os povos indígenas já tivessem suas próprias civilizações moldadas pelo seu entorno. As primeiras nações entendiam sua conexão com os ecossistemas de uma maneira diferente, como sendo parte deles. Eles não se consideravam donos da terra. Por outro lado, o ethos político dos colonizadores era sobre dominação e extração.
A terra sempre foi um aspecto significativo das culturas indígenas, pois as pessoas se veem como parte da terra. As florestas, os rios e os animais não são vistos como “matérias-primas, recursos ou fatores de produção”. A natureza, ao contrário, é vista como parte da extensa família de seres humanos que vive em harmonia com o ambiente.
Hoje, depois de mais de 500 anos, o mundo ocidental procura salvar grupos indígenas da pobreza. Diz-se que esses grupos têm uma renda de apenas US$ 2 por dia por pessoa e ainda são forçados a se conformar à sociedade ocidental. E, apesar de continuarem a ser marginalizados, excluídos, usados, deslocados e criticados por serem diferentes daqueles que os colonizaram, desenvolveram suas terras e destruíram suas culturas, diz-se que agora estão livres.
Qual é a alternativa para aqueles que veem o mundo de acordo com os pontos de vista de seus ancestrais?
“A” verdade
Muitos dizem que hoje em dia qualquer um pode escolher onde morar, como viver ou onde trabalhar, o que seria considerado um aspecto da “liberdade”. No entanto, essas liberdades são dadas apenas àqueles que se conformam. Então, qual é a alternativa para aqueles que veem o mundo de acordo com os pontos de vista de seus ancestrais e em oposição aos estados em que vivem, que foram criados a partir de perspectivas etnocêntricas, dominantes, exclusivas e colonizadoras?
O nosso uso ocidental da biodiversidade para extração de recursos e exploração para maximizar a riqueza prevalece entre outras maneiras mais harmoniosas de entender nosso meio ambiente e ecossistemas?
Uma alternativa é tentar viver fora desse estado ocidental de ser e parar de compreender a realidade, pois a hegemonia quer que a entendamos. No entanto, os grupos indígenas e outros grupos não conformes seriam mais uma vez marginalizados, excluídos, julgados ou oprimidos por se recusarem a entrar em um modelo que vê apenas “nossa verdade” e “a verdade” como a mesma coisa.
Nós entendemos a nossa verdade. Nós realmente entendemos a deles?
Este artigo foi previamente publicado no The Impakter. Leia o conteúdo original aqui.
Matéria feita por Samuel Pérez-Attias - 20 Agosto de 2019
Ref.: https://www.opendemocracy.net/
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