Postado em 02/04/2019 17:35 - Edição: Marcos Sefrin
À época dos debates sobre a criação desse novo marco regulatório, o presidente Lula citou o exemplo norueguês como “extraordinário”, principalmente pelo fato das operadoras de petróleo no país escandinavo “pagarem 78% de imposto ao governo norueguês, sem reclamarem”
Sede regional e internacional da Statoil (hoje Equinor), em Oslo (Wojtek Gurak)
A atual crise fiscal brasileira, principalmente no âmbito de estados e municípios, tem suscitado um amplo debate nas diferentes esferas federativas a respeito de medidas que fossem capazes de diminuir as despesas e aumentar as receitas governamentais. Num contexto de dificuldade de retomada da atividade econômica e de rigidez na gestão do orçamento, as rendas provenientes da produção de petróleo e gás brasileiro assumiram um status de solução de parte dos problemas fiscais, pelo menos no curto prazo.
No âmbito do governo federal, a aceleração dos leilões do pré-sal principalmente da região da cessão onerosa, a fim de arrecadar bilhões de reais em bônus de assinatura, foi uma medida que ganhou notoriedade desde os primórdios do governo Temer. No âmbito estadual, vários governos realizaram, nos últimos anos, aumento das alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre os combustíveis visando ampliar as receitas estaduais. A equipe do atual governo federal, além de manter a diretriz de aceleração dos leilões, divulgou a intenção de repartir os recursos do fundo social do pré-sal com estados e munícipios.
Tal fundo foi criado em 2010 com objetivo de formar uma poupança pública de longo prazo para i) atenuar os efeitos futuros da queda de arrecadação proveniente da renda petrolífera quando a produção de petróleo declinar substancialmente; ii) apoiar o desenvolvimento regional e social com enfoque em sete áreas (cultura, educação, esporte, saúde pública, ciência e tecnologia, meio ambiente e mudanças climáticas) e iii) evitar uma possível entrada massiva de dólares no país por conta de um possível crescimento da exportação de petróleo que poderia forçar uma valorização cambial e provocar crises do balanço de pagamentos.
Na sua origem, o fundo foi pensado para ser financiado por meio das tributações oriundas da produção de petróleo do pré-sal, principalmente royalties, e da venda de óleo do pré-sal cujo gerenciamento é realizado pela estatal PPSA. Sua criação se efetivou com a Lei da Partilha, que regulamentou a exploração e gestão dos recursos do pré-sal e teve clara inspiração no modelo norueguês.
À época dos debates sobre a criação desse novo marco regulatório, o presidente Lula citou o exemplo norueguês como “extraordinário”, principalmente pelo fato das operadoras de petróleo no país escandinavo “pagarem 78% de imposto ao governo norueguês, sem reclamarem”. Uma matéria de Erik Farina, veiculado pelo Zero Hora, ressalta que o modelo da Noruega era visto com muita simpatia pelos governos Lula e Dilma, principalmente em função do setor petrolífero estar alicerçado aos objetivos de longo prazo do governo e pelo controle do ritmo de exploração do setor que é realizado pela empresa estatal Petoro. Por isso, a seguir é detalhado o funcionamento desse modelo e são realizadas breves considerações sobre possíveis lições para o caso brasileiro.
Conformação do regime fiscal da indústria petrolífera norueguesa
O início da exploração e produção de petróleo na Noruega ocorreu em 1971 na região de Ekofisk e, por meio da criação naquela década de uma empresa estatal – a Statoil, atualmente denominada Equinor –, o país escandinavo começou a montagem de um modelo regulatório que canalizaria boa parte dos recursos gerados pelo petróleo para o Estado nacional. A primeira medida foi a concessão do governo à Equinor de 50% ou mais das licenças de desenvolvimento de petróleo da Noruega, entre 1973 e 1985.
O rápido crescimento da Equinor (Statoil à época), que estava lhe dando uma posição dominante no setor de petróleo da Noruega e na economia norueguesa em geral, acabou por tomar o centro do debate político no início dos anos 1980. Ao mesmo tempo, o governo conservador de Kåre Willoch manifestava muitas preocupações com o risco inerente de uma empresa relativamente jovem gerenciar grande parte das receitas do governo.
Foi nessa época, então, que um acordo entre governo e oposição dividiu metade das licenças da Equinor com um fundo estatal soberano, o State’s Direct Financial Interest (SDFI), criado em janeiro de 1985. A pesquisadora da Coppe da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Raquel Almeida, em sua tese de doutoramento explicou o funcionamento desse fundo: “O SDFI (…) é um sistema criado com intuito de separar as participações do Estado e da Statoil. Como um dos vários proprietários, o Estado cobre a sua parte dos investimentos e custos, e recebe uma parcela do lucro correspondente da licença de produção. Os investimentos no SDFI são determinados quando da concessão das licenças de produção e as participações variam caso a caso. Por meio dos SDFI, o Estado norueguês detém uma parcela de alguns campos de petróleo e gás natural, oleodutos e instalações na costa”.
Como a administração pública da Noruega não estava organizada para realizar atividades comerciais na escala exigida pelo SDFI, o Ministério do Petróleo e Energia solicitou à Equinor que atuasse como gerente desse acordo. Entretanto, a Equinor requisitou que fosse preservada a sua atuação em grandes campos petrolíferos, como Statfjord. Dessa forma, o SDFI passou a partilhar as licenças de produção a outras empresas petrolíferas, ao mesmo tempo em que o Estado, por meio da Equinor, mantinha sua posição nas concessões de petróleo e gerenciava o fundo.
No final dos anos 1980, a Noruega atingiu um volume considerável de reservas de petróleo (cerca de 15 bilhões de barris) e, simultaneamente, o crescimento da produção fez com que os recursos fiscais oriundos do petróleo já adquirissem um peso significativo nos gastos orçamentários do país. Segundo o professor da Universidade de Oslo, Einar Lei, apesar dos valores recebidos pela exploração petrolífera terem sido destinados para gastos sociais e de infraestrutura, “eles também financiaram projetos dos congressistas e de seus aliados ou do próprio Executivo, […] o que trouxe um caos para as finanças públicas”. A queda do preço do barril do petróleo, ao longo daquela década, impactou negativamente as receitas públicas em 1988 – o equivalente a cerca de 20% do PIB – e, posteriormente, reverberou para o setor financeiro provocando uma crise bancária que resultou na falência de várias instituições.
Esse cenário intensificou um debate sobre a gestão dos recursos oriundos da exploração e produção petrolífera entre os membros do Parlamento e do Executivo do governo norueguês. Além dos problemas observados no próprio país, havia um temor, principalmente entre os gestores do Ministério das Finanças, de que a Noruega repetisse os equívocos ocorridos na Holanda.
A decisão acordada foi a de criação, em 1990, de um fundo soberano – denominado Government Petroleum Fund – que seria abastecido com as rendas do petróleo norueguês. De acordo com o Banco da Noruega, existiam três grandes tipos de rendas provenientes da atividade petrolífera: i) as receitas e os lucros da venda de petróleo do SDFI; ii) os dividendos pagos pela Equinor e iii) os tributos (royalties, taxas sobre a emissão de CO2 etc.) incidentes sobre a produção das operadoras estrangeiras. Tal fundo foi pensado como uma espécie de poupança futura para contrabalançar a inevitável queda de receitas quando a produção de petróleo da Noruega iniciasse a sua curva de declínio.
O primeiro depósito ocorreu em maio de 1996 pelo Ministério das Finanças e, desde essa época, foi administrado pelo Banco da Noruega. No primeiro ano, os recursos do fundo eram aplicados exclusivamente em títulos do governo. Entre 1997 e 2001, foi autorizada a diversificação de até 40% dos investimentos em ações e investimentos no exterior, inclusive em empresas privadas.
Com a abertura de capital da Equinor naquele último ano, ocorreram mudanças importantes tanto na gestão do fundo, como na aplicação dos recursos. Primeiro, o governo permitiu que os investimentos fossem dirigidos para renda fixa, incluindo instituições financeiras internacionais.
Segundo, de acordo com um trabalho organizado por pesquisadores da USP, ainda em 2001, “o parlamento norueguês decidiu instituir um Regulamento Orçamentário para o fundo soberano, no qual se determinou que somente os retornos positivos projetados dos investimentos, em termos reais, poderiam ser transferidos anualmente para o orçamento público e, caso os valores arrecadados fossem maiores que aqueles orçados, estes deveriam ser reinvestidos do fundo. Dessa forma o fundo não teria perdas do seu principal […]”.
Terceiro, foi criada a Petoro uma empresa 100% estatal responsável tanto por gerenciar o portfólio de petróleo e gás do Estado nacional quanto administrar os recursos provenientes do SDFI. Como lembra Raquel Almeida, “com a privatização parcial da Statoil, em 2001, surgiu o temor de um possível conflito de interesses na administração dos recursos do SDFI”.
A partir de 2007, já sob a alcunha de Government Pension Fund Global (GPFG), a gestão do fundo soberano se tornou mais complexa sendo abertas, gradualmente, novas formas de alocação dos investimentos, como no novo mercado e no setor imobiliário, e proibindo que tais inversões fossem realizadas dentro da Noruega. Isso visou impedir a disputa federativa sobre os recursos e a geração de efeitos inflacionários internamente. Atualmente, as regras para aplicação são as seguintes: até 60% no mercado acionário de qualquer modalidade, de 35% a 40% em renda e 5% no mercado imobiliário, sendo que foi estipulado um teto de 4% dos recursos do GPFG para o uso com despesas correntes.
Simultaneamente a essas transformações na aplicação dos recursos, em relação à composição do GPFG, o governo norueguês conseguiu se apropriar crescentemente da renda petrolífera, não apenas pelos dividendos da Equinor e de uma ampla base tributária, mas pelo crescimento da Petoro.
A Petoro não tem a função de operar campos de petróleo, mas sim de gerir a carteira do SDFI e dos recursos provenientes da produção petrolífera a ela associada, bem como de criar valor ao Estado por meio da participação ativa como concessionária em licenças prioritárias de exploração e produção de petróleo. Além de apresentar uma estrutura enxuta, a atuação da Petoro se baseia em regras bem próximas às das demais empresas parceiras, isto é, a estatal foi obrigada ao longo do tempo a arcar com os custos e riscos exploratórios. A diferença mais importante está na tributação imposta à estatal, como explica um documento do Banco da Noruega:“o SDFI [gerenciado pela Petoro] gera receitas em moeda estrangeira e, como não paga os tributos referente à renda do petróleo [uma vez que todo o recurso gerado de sua atividade fica para o próprio Estado norueguês], suas receitas são transferidas diretamente para o governo em moeda estrangeira e, como os investimentos são aplicados no exterior, não necessitam de ser convertidos em moeda nacional”.
Integrando atualmente 186 licenças de produção em 21 campos na Noruega, as participações do SDFI, gerenciadas pela operadora Petoro, variam entre 5% a 65% em vários campos de petróleo na plataforma continental, porcentagens que tendem a modificar conforme o potencial da reserva. Interessante notar, entretanto, que na carteira do SDFI a produção de campos maduros é dominante na composição dos seus ativos. De acordo com o último relatório divulgado pela Petoro, estes foram responsáveis por 70% da produção total de petróleo e gás natural liquefeito da empresa em 2018.
Ademais, como o governo norueguês reivindica a propriedade de todos os recursos no mar e sob o mar na área geográfica conhecida como plataforma continental norueguesa, a Petoro também pode também decidir se ficará de fora de certas áreas.
Essa atuação da Petoro, somados aos dividendos da Equinor e às tributações impostas às operadoras de petróleo, permite ao governo norueguês abocanhar 78% de toda renda petrolífera, sendo 28% referente aos lucros e dividendos das empresas e 50% aos tributos cobrados na operação.
Em função da alta apropriação da renda petrolífera, associada a uma regulação forte na aplicação dos recursos, o GPFG tem uma carteira de investimentos superior a US$ 1 trilhão, o que equivale a aproximadamente US$ 189 mil para cada um dos 5,3 milhões de noruegueses. Como a produção da Noruega está em declínio, saindo de 3,1 milhões de barris/dia em 2001 para 1,5 milhão de barris/dia em 2018, os debates sobre o uso dos recursos do fundo no médio prazo devem crescer nos próximos anos.
Independente disso, torna-se um truísmo observar que a gestão do GPFG apresenta grandes êxitos que, na visão dos autores, são explicados por algumas das diretrizes que sustentam a gestão fiscal do setor petrolífero norueguês, a saber: i) a Petoro e a Equinor permitem ao Estado que, simultaneamente, tenham uma administração integrada da produção de petróleo e da sua geração de receitas; ii) há uma separação clara entre os interesses empresariais da Equinor e dos interesses estatais com a produção de petróleo que é coordenada pela Petoro; iii) a gestão fiscal do fundo impede a disputa fiscal a partir da adoção de regras rígidas de gasto e aplicação dos investimentos exclusivamente no exterior; iv) há uma estratégia de diversificação e gestão dos investimentos que dilui os riscos, inclusive os cambiais; v) a estratégia do fundo, desde seu começo, está atrelada a um objetivo de longo prazo que é criar alternativas à indústria petrolífera, quando esta perder seu fôlego, a partir de uma ampla capacidade de investimentos.
Se o princípio do Fundo Social do pré-sal teve alguma inspiração no modelo norueguês, as sucessivas disputas fiscais, o uso dos recursos do pré-sal no curto prazo e a crescente perda de controle do Estado sob a gestão do setor comprovaram e comprovam que essa inspiração se transformou numa espécie de “sonho de uma noite de verão”.
*Rodrigo Leão, mestre em Desenvolvimento Econômico (IE/Unicamp), é um dos diretores do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) e pesquisador visitante do NEC-UFBA; e Rafael Rodrigues da Costa, mestrando em Ciências Sociais (Unifesp), é assistente de pesquisa do Ineep e pesquisador visitante do NEC-UFBA.
Matéria feita por Rodrigo Leão e Rafael Rodrigues da Costa 2 de abril de 2019 - Imagem por Wojtek Gurak
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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