Postado em 18/07/2018 18:33 - Edição: Marcos Sefrin
O ex-chefão da Fifa revela em livro o submundo do futebol e disseca Havelange e Platini
Blatter foi alvo de protesto em 2015
Ao se negar a assinar a permissão para o filho menor de idade jogar no Lausanne Sport, o senhor Blatter decretou, rasgando o documento:
“Você jamais ganhará a vida com o futebol.”
Sua profecia, fruto do desejo de que o filho seguisse apenas estudando, revelou-se totalmente equivocada. Joseph Blatter, 82 anos, conhecido como Sepp, fez uma carreira fulgurante atingindo o posto máximo da Federação Internacional do Futebol (Fifa, fundada em 1904), depois de exercer o cargo de secretário-geral de 1981 a 1998, na gestão do brasileiro João Havelange. Este dirigiu a entidade por 24 anos e, segundo Blatter, não era favorável à sua eleição à presidência.
“Havelange não era um presidente que dirigia, vivia a representação, o protocolo. O verdadeiro poder estava nas mãos da administração da Fifa e do seu secretário-geral”, diz Blatter, falando de si mesmo. Com sua eleição para a presidência, em 1998, ele só teve de transferir o poder que já exercia. No livro, que deixa transparecer seu narcisismo da primeira à última página, Joseph Blatter diz que João Havelange fez de tudo para se perenizar no cargo de presidente, o que conseguiu, pois dirigiu a entidade por 24 anos.
Onipotente ex-presidente da Fifa entre 1998 e 2015, Blatter resolveu contar num livro, que acaba de sair em Paris, fatos polêmicos relacionados à instituição. Mas, ainda que sua autoestima voe alto, ele sabe que a sua não é “a” Verdade. Por isso, o título de seu livro é Ma Vérité, com o subtítulo Le football, bien plus qu’un jeu.
Tal tipo de autobiografia não sugere revelações bombásticas, mas pelo menos uma Blatter faz. Ele conta que, no dia da final da Copa do Brasil, 13 de julho de 2014, recebeu às 6h30 um telefonema com uma voz dizendo que um ataque terrorista fora organizado para aquela noite.
Blatter saiu de seu quarto no Copacabana Palace e não viu seus seguranças. Percebe os seguranças do emir do Catar. Eles só falam árabe. O pai do emir sai do quarto de pijama e Blatter lhe conta da ameaça. E pede emprestado o celular do pai do emir para chamar sua segurança, pois não quer mais falar de seu telefone.
A polícia conseguiu identificar rapidamente um grupo de São Paulo, de onde a voz fez a ameaça. Decidiu-se não mudar nada para a final da noite. Ninguém soube de nada. No caminho para o Maracanã, Blatter tinha carro de proteção na frente, atrás e dos dois lados do seu veículo. Quando chegou ao estádio, ficou sabendo que a pessoa que fez a ameaça tinha sido presa e que a segurança do jogo estava garantida.
Mas não conseguiu ficar tranquilo enquanto durou o jogo. Seu sobrinho mostrou-lhe depois fotos que tirou durante a final e ele pôde constatar o quanto estava pálido. Depois de passado o susto, veio à mente o atentado dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972.
No Brasil, ninguém suspeitou de nada.
“Vivi as horas mais tensas da minha existência”, garante o ex-coroinha Blatter, que ia todo domingo à missa durante a Copa no Brasil.
No livro, Blatter, que chegou a ser acusado de comprar votos para sua primeira eleição para a presidência, declara ter como lema a frase, que cita em inglês : “If you never take a risk, you will never have a chance”. Mas ele garante que sempre se pautou por uma integridade total, tendo sido inocentado em suspeitas de corrupção e favorecimento da atribuição das Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar, respectivamente.
Poder, dinheiro e muita intriga de corte são os ingredientes presentes no cotidiano da Fifa, que já foi definida como “um Estado sem Estado”.
Seu reinado na Fédération Internationale de Football Association foi interrompido por uma inesperada ação da Justiça suíça, a pedido da Justiça americana. A investigação visava uma série de pessoas, mas ele estava excluído dela. Sepp Blatter foi surpreendido dia 27 de maio de 2015 pela Justiça suíça, que prendeu alguns delegados e membros do Comitê Executivo da Fifa na véspera do 65° Congresso da entidade. O brasileiro José Maria Marin, que sucedeu a Ricardo Teixeira na presidência da Confederação Brasileira de Futebol em 2012, era um dos presos. Marin era membro do comitê da Fifa para a organização de torneios olímpicos. Como os outros presos, foi transferido posteriormente para os Estados Unidos.
A impressão que habita Blatter é de que foi traído por colaboradores que apressaram seu afastamento ao convencê-lo de pôr seu mandato à disposição.
De Ricardo Teixeira, genro de João Havelange e investigado pelas justiças americana, espanhola e brasileira, Blatter conta uma história picante: Teixeira era muito ligado ao presidente do FC Barcelona, Sandro Rosell, durante muito tempo representante da Nike na Europa.
A marca de esporte defendeu a organização de jogos do Brasil e da Argentina no Catar. “O que não me parece muito sério”, escreve Blatter. Ele diz, ainda, que Sebastian Coe, duplo campeão olímpico de 1,5 mil metros e atleta de destaque nos Jogos Olímpicos de Londres de 2012, representava a Nike no Reino Unido. “Espantosamente, o CIO, ao qual a Fifa é subordinada, decidiu em 2012 mudar de fornecedor oficial, trocando a Adidas pela Nike para os jogos de 2016.” Sutil insinuação…
Apesar de estar fora da lista dos presos, o presidente descobre que foi traído por alguns subordinados que haviam assinado contrato com um escritório de advocacia americano sem seu conhecimento nem sua assinatura. O clima dentro da Fifa era altamente tóxico.
“Os americanos queriam me ferrar e dentro da Fifa queriam me ferrar também”, constatou Blatter.
Blatter diz que trabalhava enquanto Havelange e Marin negociavam (Foto: Orlando Barria/epa/Corbis)
Na entrevista coletiva dada pela ministra da Justiça americana, Loretta Lynch, pelo diretor do FBI, James Comey, e por Richard Weber, da Receita Federal dos EUA, este estima em 151 milhões de dólares as propinas pagas no caso de corrupção investigado (corrupção nos contratos de marketing de tevê nos jogos na América do Sul e do Norte).
Sediada em Zurique, a organização internacional de futebol é um antro de serpentes, que se detestam cordialmente e desenvolvem estratégias pessoais para amortizar os golpes dos concorrentes.
A ambição pelos altos postos é o combustível que move os dirigentes das diferentes instâncias, fascinados pelos contratos milionários de patrocinadores e direitos para a televisão.
A ministra Loretta Lynch suspeita que houve propina nos contratos de marketing e direitos de tevê, mas os direitos de transmissão das Copas foram isentos de suspeita. Quanto à Copa América, fica a dúvida:
“Uma sociedade brasileira resolveu participar da organização deste torneio da Copa América Centenário. Os contratos de direitos para a tevê foram redigidos por sua sucursal de Miami, o que permite à Justiça americana ter jurisdição sobre o caso”, diz Blatter.
As atribuições das Copas de 2018 e 2022 foram lavadas de suspeitas de propinas. O que não impede que Blatter diga todo o mal que pensa do assunto. A atribuição ao Catar é narrada como uma queda de braços entre Blatter, que defendia a candidatura americana, e Michel Platini, presidente da Uefa (Union of European Football Association), que defendia a candidatura do Catar. Fica claro que Blatter detesta Platini, que não deve morrer de amores por ele.
A atribuição da Copa ao Catar ficou engasgada na garganta de Blatter. ”Para a Copa de 2022, eram elegíveis os Estados Unidos, o Japão, a Coreia, o Catar e a Austrália”, conta ele. “Para todas essas candidaturas, delegações da Fifa foram a cada país fazer um relatório para os membros do Comitê Executivo. Mas ninguém lê esses documentos, pois já há uma ideia pronta, seja por convicção, seja por influências políticas. Se os relatórios tivessem sido lidos com atenção, teriam visto que a Copa do Mundo não poderia ser no Catar.”
As duas Copas, de 2018 e 2022, foram atribuídas no mesmo dia, 2 de dezembro de 2010. A escolha da Rússia parecia uma evidência, pois o Leste Europeu nunca tinha organizado uma Copa “e nessa região apenas a Rússia tinha condições de organizar uma competição desse nível”.
Blatter e seu comitê ponderaram que o Japão e a Coreia já haviam organizado em 2002, o Catar era um território pequeno demais para sediar um mundial e a Austrália era longe demais. Havia um consenso quase geral de que a Copa de 2022 iria para os EUA.
“Há suspeitas de corrupção da parte do Catar”, escreve Blatter. Um vídeo mostra o taitiano Reynal Temarii recebendo a proposta de 1 milhão e meio de dólares para um voto a favor do país do Golfo. Temarii foi suspenso por oito anos pela comissão de ética da Fifa, em maio de 2015.
“Mas o fundamental para o Catar ganhar a Copa foi a visita ao presidente Sarkozy, em 23 de novembro de 2010, do então príncipe herdeiro do Catar, Tamim ben Hamad al-Thani”– o atual emir.
Blatter conta que Sarkozy recebeu para almoço no Eliseu o então príncipe e o primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores, o xeque Hamad ben Jassem. No final do almoço, Platini reuniu-se com o presidente francês e telefonou a Blatter para lhe dizer que “não contasse com seus votos, pois ele não podia dizer não a Sarkozy, diante dos interesses da França”.
Dia 20 de abril de 2017, durante sua audição, Blatter contou sua conversa com Platini ao juiz suíço que dirige a investigação sobre as atribuições das Copas do Mundo de 2018 e 2022.
Um dos estádios à espera de 2022 no Catar, erguidos pelo trabalho escravo (Foto: Frank Hoermann/Sven Simon/DPA/ZUMA Press/fotoarena)
“Como sou um homem confiante, não gravo minhas conversas. Deveria tê-lo feito. O jornalista Philippe Auclair contou num livro os detalhes da negociação financeira. Não sei e nem quero saber se existe relação entre a atribuição da Copa ao Catar e o que se passou depois. Mas a França vendeu aviões militares e civis ao país num total de 14,6 bilhões de dólares, apenas seis meses mais tarde. Além disso, o Paris Saint-Germain foi comprado pela Qatar Sports Investments em 2011 por 76 milhões de euros, salvando o clube de dificuldades financeiras. E não se pode esquecer que foi criada em junho de 2012 a beIN Sport, televisão filial do Grupo Al-Jazira, dirigida então por Nasser al-Khelaïfi, atual presidente do PSG.”
A beIN logo ganhou os direitos dos campeonatos europeus, trunfo para a Uefa, presidida por Platini. “Digo e repetirei o resto da vida, a atribuição das Copas de 2018 e 2022, em dezembro de 2010, foi influenciada por uma ingerência política da França e não por presentes para uns e outros”, escreve Blatter.
O atual presidente da Fifa, Gianni Infantino, é acusado no livro de ter feito tábula rasa de tudo o que seu predecessor havia desenvolvido na instituição, afastando todos os diretores e subdiretores da era Blatter. Isso depois de ter feito campanha aberta para se eleger contra Blatter. O ódio é recíproco:
“Gianni Infantino foi igualmente decapitado da comissão de ética da Fifa, que era eficaz, e digo isso, apesar de ter sido suspenso por ela, que era independente em relação à direção de operações da Fifa”. Ela demonstrou tê-lo sido menos independente ao suspender Platini. “Sob pressão dos americanos, o que ficou claro é que não se desejava que Platini fosse presidente da Fifa. Os americanos não esqueceram que Platini trabalhou pela atribuição da Copa de 2022 para o Catar.”
A Fifa, onde Blatter entrou em 1975, gera uma soma tão fabulosa de dinheiro que não é de admirar que sua presidência ou mesmo um cargo na direção da federação seja cobiçado tanto pelo prestígio quanto pelas oportunidades de negócios, lícitos ou não.
“Considero que não é vergonhoso ganhar dinheiro, mesmo muito dinheiro, mas não imagino um só instante ganhar desonestamente”, afirma Blatter, como uma profissão de fé.
Ele diz que, ao deixar a Fifa, recebia por ano 3,2 milhões de francos suíços com os prêmios de antiguidade. No final da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, uma das mais rentáveis, ele recebeu um bônus de 10 milhões de francos suíços. “Quanto ao bônus de 14 milhões de francos suíços que a Fifa decidiu me dar pela Copa do Mundo do Brasil, nunca vi a cor do dinheiro e nunca fui procurá-lo”, escreve.
Calcula-se que a Copa de 2018 na Rússia vai gerar de 4 bilhões a 5 bilhões de euros entre ingressos e direitos de transmissão de tevê. Uma soma nada desprezível.
Blatter garante que as críticas ao elevado custo das instalações e dos estádios do Brasil teriam sido maiores se a Fifa “não tivesse freado as ambições brasileiras”. “Os organizadores locais queriam 17 estádios e nós defendíamos 10 locais de competição. Acabaram sendo 12, o que já é muito. Foi o presidente Lula que apoiou e deu peso à candidatura brasileira, tanto para a Copa do Mundo quanto para os Jogos Olímpicos”, garante Blatter, que não acha que a população se manifestou contra o futebol, mas contra o custo elevado da organização.
A Copa do Brasil acabou sendo seu canto de cisne no futebol. Escrito em colaboração com o jornalista suíço Pascal Schouwey, o livro-testamento tem um texto jornalístico, muitas vezes repetitivo e um tanto confuso. Vale como registro de um momento da história da Fifa.
Matéria feita por Leneide Duarte-Plon, de Paris — publicado 18/07/2018 00h15, última modificação 17/07/2018 19h58
Ref.: https://www.cartacapital.com.br
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