Postado em 11/10/2018 09:30 - Edição: Marcos Sefrin
LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA E DIREITO À CIDADE
Relatório da ActionAid fornece subsídios para a luta das mulheres contra todas as formas de violência ao constatar que, em todo o mundo,
elas ainda não desfrutam plenamente do direito à cidade, estando mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões quando transitam nos espaços públicos
Em 2017, as mulheres brasileiras promoveram inúmeras mobilizações e denúncias sobre assédio, violência, retrocessos nos direitos e todas as formas de opressão sexista que, por muitos anos, permaneceram silenciadas no Brasil. Em diversos momentos, elas se apoderaram de espaços até então ocupados majoritariamente por homens, denunciando atitudes machistas. Foram relatados casos nos transportes públicos, nos ambientes de trabalho e, especialmente, nas ruas. As mulheres não recuaram. Denunciaram a reforma trabalhista, as revogações de direitos sexuais e reprodutivos, os altos índices de violência e feminicídios, entre outras violações contra seus direitos.
Esse movimento encontra eco internacional. Aconteceram mobilizações similares das mulheres em diversos lugares do mundo. A Greve Internacional de Mulheres (International Women’s Strike) no dia 8 de março; o grito coletivo “Ni Una Menos”, nascido na Argentina e difundido por toda a América Latina; e as ações que se multiplicaram pelos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher, celebrados em todo o mundo, são exemplos da força de uma mobilização que ultrapassa fronteiras. Na Arábia Saudita, as mulheres finalmente conquistaram o direito de dirigir veículos e ir a estádios de futebol. Na Islândia, foi promulgada a primeira lei do mundo de igualdade salarial entre homens e mulheres. Nos Estados Unidos, as denúncias de assédios sofridos durante anos pelas mulheres fizeram tremer as estruturas da indústria audiovisual.
Tudo isso mostra o fortalecimento e a consolidação da articulação feminista. Não se trata tão somente de uma onda de conscientização de mulheres, mas da transformação dessa consciência em ação articulada para enfrentar os constantes ataques que sofremos nos contextos político, econômico e social. No entanto, por mais animadas que esse retrospecto nos faça sentir, pela afirmação da força da união entre mulheres, um breve olhar pelo mundo que nos rodeia revela o recrudescimento do conservadorismo, do neoliberalismo e do fundamentalismo não só no Brasil, mas também em outros países.
Diante dessa conjuntura mundial, a organização internacional de combate à pobreza ActionAid lançou, em dezembro de 2017, um estudo comparativo sobre a segurança urbana para as mulheres em dez países onde realiza a campanha Cidades Seguras para as Mulheres – Brasil, África do Sul, Jordânia, Nepal, Nigéria, Zimbábue, Bangladesh, República Democrática do Congo, Libéria e Senegal. O relatório, denominado “De quem é a cidade?”, fornece subsídios para a luta das mulheres contra todas as formas de violência ao constatar que, em todo o mundo, elas ainda não desfrutam plenamente do direito à cidade, estando mais suscetíveis que os homens a sofrer agressões quando transitam nos espaços públicos. Foram utilizados diversos indicadores para medir a sensação de segurança das mulheres no ambiente urbano, além do nível de comprometimento dos governos com a garantia de uma vida sem violência para nós. O estudo contém um ranking dos países e recomenda medidas a serem adotadas pelos governos para tornar suas cidades livres da violência de gênero.
O documento sistematiza também dados alarmantes. Em todo o mundo, três em cada dez mulheres já levaram socos e empurrões, foram arrastadas, ameaçadas com armas, estupradas ou vítimas de outras formas de violência, principalmente por seus parceiros. Praticamente uma em cada dez mulheres já sofreu ataques sexuais de alguém que não o parceiro. Um terço de todos os assassinatos de mulheres é cometido por seus parceiros íntimos.1
Gerar informações sobre as condições de vida das mulheres é fundamental para cobrar do poder público e de toda a sociedade uma atuação pelo fim de todas as formas de opressão contra a mulher, tanto nos espaços públicos como nos privados. No que diz respeito ao direito à cidade, o relatório evidencia os efeitos da cultura machista, apresentando dados que confirmam a urgência de investir em políticas para que as mulheres tenham acesso a serviços públicos de qualidade, que devem ser sensíveis e acessíveis a gênero.
Os impactos da violência na vida das mulheres não são somente físicos. Além das agressões em si, há o medo de circular nos espaços públicos, um mal que atinge a todas nós, independentemente de onde vivemos. Isso impede boa parte de nós de exercer uma cidadania plena. Um dos principais fatores apontados no relatório para essa ocorrência é a precariedade do transporte público. O estudo ainda aponta que deficiências nos sistemas de educação e no acesso a alimentação digna, saúde pública, saneamento básico, lazer e justiça também se configuram como fatores que perpetuam a discriminação de gênero. Essa discriminação se agrava por elementos étnicos, de casta, classe, idade e orientação sexual.
O relatório dá um panorama sobre a forma como esses problemas têm sido, ou não, enfrentados e aponta recomendações aos governantes. Entre elas, estão coletar e sistematizar dados detalhados sobre a violência contra as mulheres em espaços públicos e usar essas informações para planejar programas de prevenção e resposta relacionados à segurança urbana; garantir que grupos de mulheres e sobreviventes de violência participem, em todas as etapas e processos de elaboração, monitoramento e auditoria, desses programas; abordar o persistente machismo institucional entre os principais órgãos de implementação desses programas, como a força policial, o Judiciário e o setor público como um todo; garantir que todos os serviços públicos sejam universais, acessíveis e sensíveis a gênero, incluindo serviços que previnam a violência contra a mulher e respondam a esse tipo de violência; colocar em prática políticas fiscais progressivas para garantir que os serviços públicos sejam adequadamente financiados; e remover incentivos que empresas possam ter que enfraqueçam o respeito e a proteção dos direitos da mulher.
Comparativamente aos países estudados, o Brasil ficou em quarto lugar no ranking gerado pelo relatório – atrás de Nepal, Nigéria e Jordânia. O país ainda dispõe de dados, leis e planos destinados ao combate à violência contra as mulheres. Nos outros locais, há uma alarmante lacuna na produção de informações sobre as condições de vida das mulheres. A existência de dados e leis é um passo importante para o fim das desigualdades. Apesar disso, ainda estamos distantes da superação das injustiças sofridas pelas mulheres e da promoção de cidades mais seguras para elas.
Essas iniciativas brasileiras de geração de dados e promulgação de leis têm permitido que governos, principalmente locais, procurem pôr em prática serviços para ampliar o direito das mulheres à cidade. São projetos iniciais, e alguns deles são compartilhados no relatório. Os exemplos brasileiros vêm de Heliópolis, na cidade de São Paulo, e de Garanhuns e Caruaru, em Pernambuco. Em ações que aconteceram no âmbito da campanha Cidades Seguras para as Mulheres, da ActionAid, foram desenvolvidas iniciativas articuladas pelas secretarias de Mulheres dessas cidades, que levaram iluminação pública de LED a 100% de bairros pobres, aprovaram leis para garantir paradas de ônibus mais seguras e construíram planos municipais de Cidades Seguras para as Mulheres. No município de Caruaru, foi criada uma Câmara Técnica de Cidades Seguras para as Mulheres, aproximando a sociedade civil das decisões e orientações sobre as políticas públicas elaboradas.
Embora animadores, esses esforços foram pontuais e aplicados por gestões municipais mais favoráveis e sensíveis às pressões sociais, não chegando a se tornar políticas públicas permanentes.
As recentes alterações no cenário político do Brasil estão levando a um retrocesso nos alcances obtidos em relação aos direitos das mulheres. O que se percebe atualmente é um verdadeiro desmonte de todas as iniciativas de ampliação da nossa cidadania. Houve extinção de ministérios que trabalhavam especificamente essa pauta no Executivo federal. Além disso, com a redução de repasses de recursos públicos aos governos estaduais e municipais, agravada pela crise econômica, está em curso no país um profundo enxugamento dos investimentos na melhoria de infraestrutura e serviços públicos, afetando diretamente as mulheres, em especial as de baixa renda e mais vulneráveis. Até mesmo os espaços de participação popular estão em risco.
O ano de 2018 será muito importante para a luta feminista. Haverá eleições amplas e decisivas não apenas no Brasil, mas em vários países latino-americanos. Diante de uma onda conservadora, neoliberal e com forte fundamentalismo religioso, os movimentos de mulheres deverão desenvolver uma agenda ainda mais intensa, capaz de fazer frente a qualquer tentativa de retrocesso que ameace os direitos não só das mulheres, mas de toda a população.
Se considerarmos o enfraquecimento brutal de nossa democracia, retomá-la significa defender radicalmente uma democracia participativa e representativa em diversidade. Nela, as mulheres exercem um protagonismo marcante, constituindo um poder social capaz de transformar nossas relações e pôr fim a todas as formas de opressão sexista, classista, LGBTfóbica e racista.
*Ana Paula Ferreira, Ingrid Farias e Jéssica Barbosa são responsáveis pelo Programa de Direitos das Mulheres da ActionAid no Brasil.
1 Monya Barker, “Violence Against Women at Epidemic Proportions” [Violência contra mulheres em proporções epidêmicas], Scientific American, 20 jun. 2013.
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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