Postado em 01/05/2019 09:10 - Edição: Marcos Sefrin
Tenho participado de grupos terapêuticos e escrevo hoje algumas reflexões que têm me atormentado a alma. Uma coisa é ver as estatísticas de violência familiar, de espancamento de crianças, de agressão à mulher, de abuso sexual – sendo que os números não representam a totalidade dos casos, porque há muitos que não chegam ao campo das denúncias… Outra coisa é ouvir as vítimas, de 20 a 80 anos, traduzindo em lágrimas e lembranças amargas, a infância roubada, oprimida e violentada! Enfatizo que as narrativas estão entre jovens e velhos, porque isso demonstra que há uma tradição instalada, através das gerações, de violência e abuso dentro das famílias. E não são casos isolados. Mesmo fora desses grupos, entre pessoas de meu conhecimento, há várias que sofreram violência física, violência psicológica e violência sexual daqueles mesmos que deveriam protegê-los, amá-los e acarinhá-los de maneira devotada e pura.
Não é possível discutirmos a violência institucional, a violência policial, o Estado que oprime e reprime, as nações em guerra, se não adentrarmos a casa, onde crescem aqueles que farão parte da sociedade. E que violentados, arrancados de sua dignidade, desde crianças, terão muitas vezes dois caminhos igualmente trágicos: ou reproduzirão a violência e o abuso sofridos, perpetuando o ciclo, ou se retrairão, submissos, omissos, inseguros, favorecendo a violência e o abuso de outros. O caminho da superação é possível – e conheço muitos que trilham por ele – mas é preciso terapia, acolhimento, luta interna e muita força de vontade para perdoar e ir adiante.
Esse quadro nos lembra que os impulsos doentes, sádicos e perversos do ser humano estão fortemente presentes ainda em pleno século XXI. Do ponto de vista evolucionista do espiritismo, digo ainda, porque temos a perspectiva (ou pelo menos a esperança) de superação dessa brutalidade humana, rumo a formas mais amorosas, saudáveis e confortadoras de relações sociais, tanto na família, como no mundo externo.
Mas está claro que enquanto não combatermos, denunciarmos e nos indignarmos com a violência que se faz a uma criança indefesa, não poderá haver esperança de superarmos o facismo, o feminicídio, o genocídio étnico… Se um pai ou uma mãe não se enternecem com a dor e a sensibilidade de um ser tão adorável quanto uma criança e partem para palmadas, cintadas, ferro quente, estupro… como esse ser desumano poderá entender ou praticar o respeito na sociedade? Como poderá apoiar políticas de justiça e igualdade se nem o básico da relação com um filho consegue exercitar?
Não há limite aceitável para a violência contra crianças: nem gritos, nem palmadas, nem chineladas, nem cintadas! Tudo isso é covarde, opressor, fere a sensibilidade, humilha e não tem nenhuma função educativa – como muitos gostam de justificar. Como educadora, que lidei com crianças durante muitos anos em sala de aula, conheço muito bem as consequências nefastas de qualquer violência, mesmo aquela que nos parece inocente, como dizer a uma criança que ela é burra e não serve para nada. O tapa, o discurso humilhante, mas também a frieza, a negligência, o abandono são marcas que se imprimem no psiquismo infantil e ficam como feridas abertas pela vida toda. Haja terapia para curar.
Quando vemos adultos contarem cenas traumáticas da infância, há algumas reações típicas. Alguns tentam justificar: – Eu mereci, eu era terrível (assimilaram a imagem que os pais projetaram nela). Não há nada de terrível numa criança. Apenas carência de afeto e atenção.
Outros riem nervosos, como se aquilo fosse uma coisa normal, corriqueira, sem importância – numa banalização da violência.
E outros choram como se ainda fossem crianças, lembrando das palavras duras ouvidas, da dor das surras ou da vergonha do abuso.
A criança, que ainda está lá no fundo do adulto, não quer aceitar que os pais eram sádicos ou abusadores. Os pais fazem parte de nós. Eis o conflito psíquico instalado. Mas é preciso coragem, primeiro para sentir a mágoa, a raiva, a indignação. Depois, se possível, avançar para o perdão, a empatia (sabendo que muitas vezes os pais passaram o mesmo da infância) e, finalmente, a superação.
Mas há que se falar sobre o assunto, há que se conscientizar as pessoas de que a violência nunca é normal, nunca é aceitável, nunca é justificável. O corpo do outro é sagrado. A psiquê do outro é sagrada. Amar é respeitar, acolher, dialogar, orientar com suavidade e paciência quando necessário, mas jamais humilhar ou ferir, agredir ou oprimir.
A violência doméstica se encontra em todas as classes sociais, mas muitas vezes é agravada pelo estado de miséria de uma família. A miséria aparece aliada à ignorância (não no sentido escolar do termo, mas a ignorância da brutalidade) e se dá no meio da fome, da tensão, em conluio com o álcool e com as drogas. E então, a violência se torna a linguagem de cada dia. Nesse sentido, a sociedade que não dá oportunidades justas de educação, trabalho e desenvolvimento humano é co-responsável por essa geração de crianças feridas.
E outro fato não menos relevante no meio de tudo isso está o machismo – o modo patriarcal de vida familiar, onde a lei do mais forte – o pai, o irmão, o avô, o tio – exerce o poder da violência e a perversidade do abuso. Os homens precisam ser urgentemente educados para o respeito, para o igualdade, para a ternura e para o humanismo. Há um documentário norte-americano, dirigido e produzido por mulheres, The Mask you leave in, que retrata contundentemente como se constitui a masculinidade em nossa sociedade – de forma violenta e desumana. Tudo o que é delicado e sensível é desprezado. Então, pode-se bater nas crianças, violentar mulheres e matar gays… tudo faz parte do mesmo pacote do macho predador.
Há, portanto, muito trabalho a fazer, para evoluirmos num sentido humanista, não violento, amoroso, para uma sociedade que respeite as crianças, pratique a ternura e acolha a todos. E então não teremos mais Bolsonaros no poder…
Matéria feita por Dora Incontri dia 29/04/2019 - Espiritismo Progressista
Ref.: https://jornalggn.com.br/
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