Postado em 27/03/2019 14:30 - Edição: Marcos Sefrin
Comissão da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) incluiu em seu relatório final um número limitado de 10 etnias indígenas entre as 434 vítimas de graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 a 1985. Segundo o relatório, no período investigado ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Muitos sofreram tentativas de extermínio.
No capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” consta que entre os índios mortos estão, em maior número 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA).
O relatório afirma que o número real de indígenas mortos no período pode ser maior.
Deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”.
A investigação sobre as mortes dos índios brasileiros foi publicada no capítulo do relatório denominado “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” de responsabilidade individual da psicanalista Maria Rita Kehl. O capítulo não responsabiliza os autores dos crimes, mas recomenda a continuidade das investigações, pedidos públicos de desculpas do Estado, regularização das terras, desintrusão, recuperação ambiental das reservas e a reparação coletiva.
O capítulo reconhece “o Estado brasileiro pela ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum”.
Atualmente a população brasileira é composta por 900 mil índios de 305 etnias, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
O pesquisador Maiká Schwade, integrante do Comitê Estadual de Direito à Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, disse à Amazônia Real que o relatório final da CNV é, em parte, uma vitória dos movimentos sociais de modo geral e em particular dos movimentos que puseram em discussão a questão indígena, mas ele criticou a “superficialidade” do capítulo dedicado aos povos indígenas.
Maiká Schwade, que é doutorando em Geografia Agrária, defendeu a criação de uma comissão cujos trabalhos completem a investigação da CNV.
“São mais de 8.500 mortos que permanecem sem direito a identidade pessoal e política, como se fossem pessoas de segunda categoria ou nem isso. É preciso ficar claro de que não são 434 vítimas, mas 8.934 ou mais. Todos têm nome, todos morreram por uma causa. Que causa defendiam os 8.500 nomes esquecidos?”, questionou Maiká que, junto com seu pai, Egydio Schwade, realizou um vasto trabalho de pesquisa de violações nas décadas de 70 e 80 contra o povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. Parte das apurações do Comitê serviu de base para o relatório da CNV.
Maiká Schwade destaca que é preciso uma nova investigação formada por uma comissão pluricultural.
“Isso é importante para que não seja criado um espaço segregado aos mortos e desaparecidos indígenas, mas concluir a relação das vítimas da ditadura militar no Brasil, incluindo a luta política indígena e camponesa por seus territórios invadidos. Reconhecê-los como protagonistas e vítimas são passos importantes para conhecermos o Brasil, nossa diversidade cultural e política e para a reparação das injustiças históricas, como a necessária desintrusão dos territórios invadidos por grileiros”, disse.
Veneno e pistolagem mataram índios Cinta-larga
A psicanalista Maria Rita Kehl começou a investigar as violações de direitos humanos contra os indígenas e componeses brasileiros em novembro de 2012. Ela visitou aldeias indígenas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país.
Segundo a investigação, os índios da etnia Cinta Larga, que vivem entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia, foram violentamente atacados. Desde a década de 50, estima-se que uma população de 5 mil Cinta Larga morreu por diversos motivos: envenenamento por alimentos misturados com arsênico; aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola; e assassinatos em emboscadas, nas quais suas aldeias eram dinamitadas ou por pistoleiros.
“Muitas dessas violações de direitos humanos sofridas pelo povo Cinta Larga foram cometidas com a conivência do governo federal, por meio do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), e depois da Funai, o que permitiu a atuação de seringalistas, empresas de mineração, madeireiros e garimpeiros na busca de ouro, cassiterita e diamante no território dos Cinta Larga, omitindo-se a tomar providências diante dos diversos massacres que ocorreram na área indígena”, diz o relatório.
O povo Waimiri-Atroari sofreu ameaça de extinção nos anos 80 (Foto: PWA)
O genocídio dos 2.650 Waimiri-Atroari
Em 2013, a psicanalista Maria Rita Kehl esteve na Terra Indígena Waimiri-Atroari, entre o Amazonas e Roraima, para investigar o massacre de 1.500 a 2.000 indígenas. O relatório final da comissão concluiu que foram mortos 2.650 índios da etnia.
O capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” diz que os índios da etnia Waimiri-Atroari foram massacrados entre os anos 1960 e 1980. Neste período, a terra indígena foi afetada pela abertura, construção e pavimentação da BR-174 (que liga Manaus à Boa Vista (RR)), pela obra da hidrelétrica de Balbina, e pela atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas que existiam no território.
A CNV relata que, conforme Censo da Funai (Fundação Nacional do Índio) em 1972, a população de Waimiri-Atroari era de 3 mil indígenas. Em 1987 eram 420 índios e em 1983 apenas 350 pessoas.
Segundo o relatório, além da atividade mineradora, as terras dos Waimiri-Atroari foram também invadidas por posseiros e fazendeiros que se instalavam às margens da BR-174 e ao sul da reserva, em Roraima.
O documento diz que um estudo da Funai apontou que, em 1981, o governo do Estado do Amazonas emitiu 338 títulos de propriedade incidentes sobre a área da reserva Waimiri-Atroari. O esquema ficou conhecido como “grilagem paulista”.
“No bojo desse processo, o governo militar apoiou ainda iniciativas de colonização do território Waimiri-Atroari, com financiamentos de atividades agropecuárias por meio dos programas Polo Amazônia e Proálcool, que beneficiaram, entre outras empresas, a Agropecuária Jayoro”, afirma o relatório da CNV.
O indigenista José Porfírio Carvalho, responsável pelo Programa Waimiri Atroari, prestou depoimento à Comissão da Verdade em 2013. Ele foi testemunha do desaparecimento dos índios waimiri-atroari durante a construção da BR-174. “Em 1987 encontrei apenas 375 índios na reserva [antes havia 1.500]”, disse ele em entrevista à Folha de S. Paulo.
Carvalho também pediu a CNV uma investigação sobre a morte do sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa, em 1974. “A versão dos militares é que encontraram o Gilberto morto pelos índios. Não vimos o corpo porque o caixão foi lacrado. Não sabemos se ele morreu flechado ou a tiro”, afirmou.
Em entrevista à agência Amazônia Real nesta quinta-feira (11), o indigenista José Porfírio Carvalho disse que, mesmo sem ter lido o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, mas pelo que tem acompanhando até momento da investigação, os casos de mortes e desaparecimentos devem continuar a serem apurados, assim como buscar os responsáveis pelos crimes.
“A apuração precisa continuar, ouvindo também o Exército, que deveria disponibilizar os arquivos com os documentos sobre as construções das estradas. Todos envolvidos no processo estão nesses documentos. Ficou faltando essa conversa com o Exército. Esta foi a minha primeira sugestão à CNV”, afirmou Porfírio.
O indigenista disse que, quando Maria Rita Kehl esteve na reserva Waimiri-Atroari ouviu os depoimentos dos índios na metade do ano passado.
“Ela conversou com os índios. Eles falaram o que tinham que falar. Eles são desconfiados, mas responderam todas as perguntas dela. Ela saiu satisfeita. Então, acho que é necessário que seja feita uma investigação real do que aconteceu. Aquelas mortes não podem ficar impunes. Que as pessoas que a executaram sejam punidas. Os índios não estavam fazendo revolução, eles estavam cuidando da terra deles, como é até hoje”, afirmou José Porfírio Carvalho.
As mortes de 354 Yanomami
Yanomami anda em pista próxima a aldeia Surucuru nos anos anos 90 (Foto: Kátia Brasil/AR).
Segundo o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do relatório da Comissão da Verdade, a abertura do trecho da Perimentral Norte (BR 210), entre o município de Caracaraí e o limite entre os Estados de Roraima e Amazonas, provocou as mortes de 354 índios Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias do rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 índios de malocas do rio Catrimani na década de 70.
O documento diz que a consequência da omissão da Funai (responsável pela saúde indígena na década de 70), causou diversas epidemias de alta letalidade, como sarampo, gripe e, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), eclodiram entre os Yanomami, vitimando, já no primeiro ano da construção da estrada, cerca de 22% da população de quatro aldeias. No extremo leste do território Yanomami, estima-se que cerca de 80% da população tenha morrido em meados da década de 1970.
Conforme a investigação, na década seguinte, o impacto contra os Yanomami aumentou com o avanço do garimpo ilegal, um problema que persiste até os dias de hoje. “O efeito contra a população indígena foi devastador com milhares de mortos de indígenas”, diz o documento.
Trecho do depoimento de Davi Kopenawa, principal liderança Yanomami, foi reproduzido no relatório:
“Eu não sabia que o governo ia fazer estradas aqui. Autoridade não avisou antes de destruir nosso meio ambiente, antes de matar nosso povo. […] A Funai, que era para nos proteger, não nos ajudou nem avisou dos perigos. Hoje estamos reclamando. Só agora está acontecendo, em 2013, que vocês vieram aqui pedir pra gente contar a história. Quero dizer: eu não quero mais morrer outra vez”.
A reportagem procurou Davi Kopenawa nesta quinta-feira (11) para comentar sobre o relatório da CNV, mas ele disse que ainda não tinha lido e por isso não poderia dar declaração.
Mas ele reiterou o que vem denunciando há vários anos: a atividade minerária ilegal na reserva Yanomami aumenta, apesar das operações de retiradas dos garimpeiros. “A gente consegue mandar eles embora, mas eles voltam. Parece que o garimpo nunca vai sair daqui enquanto os garimpeiros tiverem apoio das autoridades, dos homens que têm dinheiro. Esses nunca vão presos”, disse.
A invasão de empresas no território Sateré-Mawé
O relatório da Comissão Nacional da Verdade cita a invasão de território que acarretou em quatro mortes de índios da etnia indígenas Sateré-Mawé, na área do baixo rio Amazonas (AM). O relatório diz que em agosto de 1981, resguardada por um contrato de risco firmado com a Petrobras, a empresa estatal francesa Elf Aquitaine invadiu o território Sateré-Mawé, efetuando um levantamento sismográfico que visava descobrir lençóis petrolíferos.
De acordo com a investigação, a empresa abriu 300 quilômetros de picadas (caminho na floresta) e clareiras para possibilitar o pouso de helicópteros na região do rio Andirá (em Barreirinha), derrubando indiscriminadamente a mata.
Em setembro de 1982, após um convênio ilegalmente firmado entre a Funai e a Petrobras, a mesma empresa voltou a invadir o território Sateré-Mawé, segundo o relatório. Dessa vez, a Braselfa, subsidiária da Elf-Aquitaine no Brasil, e a Companhia Brasileira de Geofísica (CBG), operaram nas áreas da cabeceira do Marau e no Andirá, efetuando novo levantamento sismográfico.
“Mesmo após a retirada da empresa da área, os danos permaneceram, já que a mesma deixou enterradas nas picadas inúmeras cargas de dinamite, levando à morte Maria Faustina Batista, Calvino Batista, Dacinto Miquiles e Lauro Freitas”, diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Participaram do grupo de trabalho “Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas”, além de Maria Rita Kehl, os pesquisadores Heloísa Starling e Wilkie Buzatti, além do colaborador voluntário Inimá Simões.
O líder Davi Yanomami em manifestação contra a violência aos índios em 1991, em Roraima (Foto: Kátia Brasil/AR)
Ref.: http://amazoniareal.com.br/
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