Postado em 19/06/2019 14:44 - Edição: Marcos Sefrin
O documento atende aos interesses americanos e coloca o Brasil numa posição subalterna
Em 18 de março de 2019, os governos do Brasil e dos Estados Unidos assinaram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) que regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo norte-americano e de empresas desse país. Foguetes e satélites desenvolvidos com tecnologia estadunidense, tanto do governo como de empresas privadas autorizadas por ele, poderão ser lançados de Alcântara, e o Brasil receberá uma compensação monetária por isso.
O governo brasileiro defende o acordo com uma argumentação de cunho exclusivamente econômico. De acordo com o Ministro da Ciência, Tecnologia e Informação, Marcos Pontes, o Brasil deixou de arrecadar 3,9 bilhões de dólares nos últimos 20 anos em razão da não aprovação de um acordo semelhante com os próprios EUA.
Com a aprovação do AST, ainda segundo o ministro, o Brasil teria a possibilidade de capturar 1% do volume global de negócios relativos à exploração do espaço, estimado por ele em 1 trilhão de dólares ao ano em 2040. O que se observa é a propaganda que é feita em relação a esse acordo, e a pressa no sentido de aprová-lo para que a parceria com os Estados Unidos possa funcionar. O governo fornece dados puramente econômicos de comprovação duvidosa, e evita a discussão das implicações de um alinhamento geopolítico e tecnológico com os EUA no setor espacial.
A atividade espacial necessita de um componente básico para ser exercida: os locais de lançamento, sendo os mais sofisticados denominados espaçoportos. Conforme relatório do Center for Strategic & International Studies (CSIS), a escolha da localização dos espaçoportos depende essencialmente de variáveis geográficas e políticas.
Com relação aos aspectos geográficos, quanto mais próximo da Linha do Equador, isto é, quanto menor a latitude, melhor o local para a realização de lançamento de foguetes. A velocidade de rotação de superfície do Kennedy Space Center/Cape Canaveral, nos EUA, é de 408 m/s. Em Alcântara, é de 465 m/s. Esta característica possibilita que se lancem cargas mais pesadas e com economia de combustível.
Além da geografia, há os fatores políticos, provavelmente mais importantes ainda. Deve-se considerar a estabilidade das relações diplomáticas com países vizinhos. Também, há um fator importante na estabilidade política doméstica do Brasil, o que contribui para um outra consideração de peso no cálculo de quem negocia o AST: a Base de Alcântara está situada no território de um governo brasileiro que sinaliza uma pretensão de alinhamento geopolítico com os EUA.
O acordo de salvaguardas tecnológicas
O acordo de março não é o primeiro feito em torno do uso do Centro de Lançamento de Alcântara. Em abril de 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso assinou um documento também com os EUA, então sob a administração Clinton. Esse acordo era virtualmente idêntico ao atual, em termos de objetivos e restrições que foram aceitas pelo Brasil. Em 2001, o Congresso brasileiro barrou o acordo com a justificativa de que ele feria a soberania nacional.
Em 2002, foi firmado outro acordo com a Ucrânia, e que viria a criar a Alcântara Cyclone Space, empresa binacional com o objetivo de comercializar e lançar satélites utilizando-se de tecnologia de foguetes ucraniana e da base de Alcântara. Estavam presentes restrições parecidas com as colocadas pelos estadunidenses. Todavia, a cooperação com a Ucrânia não vetava ao governo brasileiro a busca de outras parcerias nem colocava empecilhos quanto ao uso do dinheiro obtido com o aluguel do CLA.
O acordo com a Ucrânia não prosperou. Além dos problemas políticos enfrentados pela Ucrânia com a Rússia, houve os efeitos do acidente em Alcântara com o VLS brasileiro em 2003, que vitimou vários engenheiros e cientistas. O governo brasileiro desacelerou o programa, o que demandaria uma pesquisa mais aprofundada acerca desse comportamento.
Também houve pressão do governo dos EUA para que os ucranianos não transferissem tecnologia de foguetes para o Brasil. O projeto junto ao governo ucraniano seria cancelado em 2015 durante o governo de Dilma Rousseff, e, entre 2018 e 2019, a empresa binacional foi definitivamente sepultada nos governos Temer e Bolsonaro.
O atual Acordo de Salvaguardas Tecnológicas é praticamente igual ao assinado pelo governo FHC. O objetivo do acordo, destacado logo no Artigo I, é exatamente o mesmo: evitar o acesso ou a transferência não autorizada de tecnologias dos Estados Unidos da América.
É prevista a criação de dois tipos de áreas especiais, as “áreas controladas” e as “áreas restritas”. As primeiras possuem o acesso controlado pelos governos brasileiro e norte-americano. Nas “áreas restritas” só será permitido o acesso de pessoas autorizadas pelos norte-americanos. Importante ressaltar que o acordo não especifica quais as áreas efetivas do Centro Espacial de Alcântara que serão “áreas controladas” e “áreas restritas”, sendo esta responsabilidade concedida aos Licenciados Norte-americanos envolvidos em atividades de lançamento.
Além de permitir qualquer transferência tecnológica apenas em casos de exceção em que ambos os países concordem mutuamente, o acordo impede que o Brasil invista seus ganhos financeiros oriundos do aluguel de Alcântara em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação, ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados, bem como em sistemas da Categoria I do MTCR. Por fim, o AST também proíbe que o Brasil negocie futuros acordos que envolvam o lançamento de foguetes em Alcântara com países que não fazem parte do mesmo MTCR.
Problemas do acordo
Quando se examina o documento do Acordo de Alcântara, fica evidente que a maior limitação imposta pela parceria com os EUA (ou, melhor dizendo, imposta pelos EUA) está no cerceamento da transferência de tecnologia, o que termina interferindo seriamente nas decisões soberanas do Brasil no sentido de desenvolver tecnologia avançada na área espacial. Logo no Artigo I, há a declaração de que o objetivo é “(…)evitar o acesso ou a transferência não autorizados de tecnologias não relacionadas ao lançamento(…)”.
Nesse sentido, não seria exagero observar que o acordo serve para garantir que os EUA, como sócio maior, reserve para si o direito de determinar quem usará a base e como ela será empregada. É explícito que não haverá o repasse de capacidades científicas e de engenharia para que o Brasil retome a construção dos seus próprios VLSs. Pior: o acordo impede a transferência de recursos oriundos do aluguel da base para a pesquisa diretamente relacionada com a construção de um VLS nacional.
Em relação às questões territoriais, dois problemas principais são destacados: as restrições de acesso dentro da base e a recuperação de possíveis destroços em caso de acidente fora da base. Pelo acordo, o governo do brasileiro deve identificar todos os seus representantes, porém a existência de áreas restritas dentro do CLA, controladas pelos EUA, onde apenas pessoas autorizadas por esse governo terão acesso é um grave exemplo de inacessibilidade do Brasil dentro do próprio território.
No segundo caso, o governo brasileiro tem o dever de auxiliar na busca de destroços em todo o seu território. Deverá enviar Órgãos de Polícia e Prestação de Socorro Emergencial, porém estes deverão ser acompanhados por norte-americanos nas áreas restritas e deverão retornar qualquer material recolhido para o governo dos Estados Unidos, bem como quaisquer fotografias tiradas por esses órgãos e descrições dos equipamentos recuperados em território brasileiro.
O AST também impõe ao Brasil limitações em busca de parceiros paralelos aos Estados Unidos no que se refere a Alcântara. Esse dispositivo, portanto, limitaria a soberania brasileira na busca de parcerias com países como a China, que vem desenvolvendo um programa espacial de altíssima qualidade e que busca cooperação em diversos setores pelo mundo.
O curioso nessas limitações é que estão embutidas cláusulas que permitem, num mecanismo de dupla consulta, contornar, por exemplo, a questão da não aderência ao MCTR. Países que sejam aliados dos EUA e que estejam aprofundando os laços com o Brasil (o caso mais evidente é o de Israel), seriam os beneficiados aqui. Em todo o caso, isso é uma intromissão séria na soberania brasileira na área e tende a favorecer o sócio mais forte, os EUA.
O AST define que não haverá lançamentos de foguetes com carga explosiva em Alcântara, mas há uma inconsistência em relação a proibição do uso militar da base. Há a possibilidade de que o emprego militar da base seja obtido, com vantagem exclusiva para os EUA, de outra forma: com o lançamento de satélites de vigilância e espionagem, que incorporam a mesma tecnologia de satélites de uso civil.
Resumindo os problemas
A partir da análise de todo o documento, e, em especial, sobre o veto estadunidense colocado no Artigo III, e que impactam diretamente sobre a soberania do Brasil, deve-se levar em conta sobre razões de ordem geopolítica, tecnológicas e comerciais que envolvem o AST. No primeiro caso, é certo que os EUA conhecem a cooperação espacial do Brasil com a China, e tentam se prevenir contra a possibilidade de um aumento mais efetivo dessa associação em algum momento futuro. O mesmo vale em relação a outros possíveis parceiros.
Sobre as razões tecnológicas, deve-se observar que o Brasil tem formado quadros técnicos no setor aeroespacial de reconhecida competência e que, com o estímulo governamental correto, podem desenvolver uma gama de capacidades de modo a mobilizar setores de pesquisa em universidades, empresas e criar uma sinergia com outros ramos da economia. Vetando o aporte de recursos para o VLS nacional, eles se previnem contra, e/ou retardam objetivamente qualquer política pública futura que pode impulsionar efetivamente a exploração do espaço.
Quanto às razões comerciais: hoje, Alcântara tem capacidade muito restrita de lançamento sub-orbital. Se a parceria se aprofundar nos próximos anos, serão feitos investimentos de modo a transformar o CLA num espaçoporto de fato, como o são os da Guiana Francesa ou do Cabo Canaveral. Existe uma possibilidade de que a utilização da base traga, de fato, um aumento nos recursos financeiros que serão administrados pelo governo brasileiro. Para Washington, faz sentido prevenir-se quanto a utilização desses recursos caso eles aumentem, proibindo o aporte justamente num VLS brasileiro.
Pelo exposto no artigo, a conclusão é de que o acordo, em sua forma atual, atende aos interesses dos EUA e coloca o Brasil numa posição subalterna.
Fica muito difícil aceitar que o Brasil será esse grande player aceitando restrições que tolham sua soberania. Fica a pergunta: a quem interessa essa situação, dentro e fora do país?
Por Flávio Rocha de Oliveira, Bruno Venâncio A. Costa, Gabriel Santos Carneiro, João Victor Dalla Pola, Lucas Macchia de Oliveira, Pedro Versolato e Tarcísio Rodrigo de Santana Melo, do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.
Ref.: https://www.cartacapital.com.br/
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