Postado em 03/07/2020 17:46 - Edição: Marcos Sefrin
A célula infectada, seguindo as instruções do vírus (em azul), desenvolve longos tentáculos que permitem a infecção de outras células
Direito de imagemELIZABETH FISCHER, MICROSCOPY UNIT NIH/NIAID
Se a devastação causada pelo coronavírus no mundo é mais do que conhecida, o que ele faz dentro do corpo e em nível microscópico ainda é uma área carente de respostas.
Responder a isso é crucial não só para a produção de conhecimento científico sobre a doença como também para o desenvolvimento de medicamentos potencialmente capazes de contê-la.
Uma equipe internacional de cientistas que vem explorando a atuação do vírus dentro do corpo descobriu algumas pistas de como o Sars-Cov-2 infecta células — e obteve também imagens disso.
A descoberta mais surpreendente é a de que as células humanas infectadas com o coronavírus sofrem uma transformação "sinistra".
Seguindo as instruções do vírus, as células desenvolvem filopódios — filamentos longos, semelhantes a tentáculos. Estas protuberânciais não são muito comuns, mas já foram observadas em outros vírus, como o vírus de Marburg.
Nestes casos conhecidos, foi observado que os vírus recorrem a esses tentáculos tanto para sair da célula afetada quanto para alcançar células próximas e, assim, acelerar a infecção.
"O que descobrimos é que o vírus induz a célula a criar essas protuberâncias, que são como galhos longos ou tentáculos", explicou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, um dos autores da pesquisa, o professor Pedro Beltrao, pesquisador do Instituto Europeu de Bioinformática do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EBI-EMBL), em Cambridge, Inglaterra.
A pesquisa, que teve parte de seus resultados publicada no periódico Cell, teve também a colaboração de pesquisadores da Universidade da Califórnia em São Francisco e da Escola Icahn de Medicina.
As imagens reveladas pelo estudo mostram células humanas infectadas com um detalhamento inédito - Direito de imagemELIZABETH FISCHER, MICROSCOPY UNIT NIH/NIAID
Mount Sinai (ambas nos EUA), do Instituto Pasteur na França e da Universidade de Freiburg na Alemanha.
"Em outros vírus, já foi observado que (essas protuberâncias) desempenham um papel na rápida disseminação da infecção, porque elas ajudam o vírus a invadir células próximas."
Embora o papel dos filopódios na infecção não tenha sido demonstrado neste estudo, os pesquisadores acreditam que existe uma "alta probabilidade" de que o Sars-Cov-2 também esteja usando esses tentáculos para acelerar sua propagação.
O que essa pesquisa já conseguiu foi produzir imagens impressionantes da célula infectada, mostrando-a como nunca vista antes, inclusive com as estranhas estruturas dos filopódios.
As fotografias, capturadas por Elizabeth Fischer, da Unidade de Microscopia dos Laboratórios Rocky Mountain, nos Estados Unidos, e cientistas da Universidade de Freiburg, revelam como o vírus brota dos filopódios e se expande através de uma ramificação.
Maquinário celular 'violado' pelo vírus
Os pesquisadores também descobriram que o vírus, além de causar a criação desses "tentáculos", provoca outros comportamentos atípicos dentro da célula infectada.
"O principal objetivo do estudo era tentar encontrar drogas que impedissem o vírus de fazer alterações na célula humana", explica Pedro Beltrao. "Mas, para conseguir isso, primeiro precisamos entender como o vírus controla os mecanismos da célula para realizar sua própria replicação."
Um vírus que entra no corpo humano "quer" sobretudo criar cópias de si mesmo para espalhar a infecção.
Mas o vírus não pode criar essas cópias por conta própria. Ele precisa entrar em uma célula, assumir o controle do maquinário celular e manipulá-lo para se reproduzir.
"O vírus não consegue se replicar sozinho porque tem um número muito pequeno de proteínas, por isso precisa assumir o controle das proteínas na célula humana", diz Beltrao.
O vírus usa os filopódios para sair da célula infectada e infectar outras células próximas - Direito de imagemELIZABETH FISCHER, MICROSCOPY UNIT NIH/NIAID
Entre essas proteínas, existem várias que são essenciais, as chamadas enzimas quinases — capazes de realizar modificações em outras proteínas que já foram produzidas.
O vírus então assume o controle dessas enzimas para realizar modificações e regular a atividade da célula.
Ao alterar os padrões de proteínas celulares, o vírus pode promover sua propagação para outras células.
Os três mecanismos do vírus dentro da célula
Depois de mapear as modificações que o vírus provoca, os cientistas destacaram três comportamentos principais na célula infectada.
"Um desses comportamentos é a criação das protuberâncias, os longos tentáculos", enumera Pedro Beltrao à BBC News Mundo.
Os filopódios não são comuns, mas já foram observados em infecções por outros vírus, como o de Marburg - Direito de imagemELIZABETH FISCHER, MICROSCOPY UNIT NIH/NIAID
"Outro comportamento visto é que a célula para de se dividir em um determinado ponto do ciclo de divisão e acreditamos que isso favorece a replicação do vírus."
"E o terceiro comportamento que detectamos é um aumento na produção de citocinas, responsáveis pela resposta inflamatória. Acreditamos que este pode ser um dos fatores causando uma inflamação exagerada nos estágios avançados da covid-19", acrescenta o pesquisador.
Descobertas podem ajudar a encontrar tratamento
Outro avanço do estudo é a indicação de que medicamentos existentes e que podem ser bons candidatos para interromper o coronavírus. Esses tratamentos, muitos dos quais usados contra o câncer, parecem bloquear os sinais químicos que desencadeiam a formação dos tentáculos.
Regular as enzimas quinases também pode ser um mecanismo de ação chave em um eventual tratamento para a covid-19
Filopodia não são comuns, mas foram observados em outros vírus como o Marburg - Direito de imagemELIZABETH FISCHER, MICROSCOPY UNIT NIH/NIAID
Os cientistas testaram cerca de 70 medicamentos existentes e identificaram sete, principalmente tratamentos anticâncer e anti-inflamatórios, que demonstraram inibir a atividade da quinase.
Agora, os pesquisadores esperam iniciar ensaios clínicos para testar os tratamentos em humanos.
A equipe também comemora a colaboração internacional e a conquista rápida de descobertas.
"Para mim, pessoalmente, foi um projeto científico fantástico, porque não é todo dia que você pode trabalhar em conjunto com tantos pesquisadores brilhantes de diferentes partes do mundo", afirmou Pedro Beltrao à BBC News Mundo.
"Este é um projeto que, em outra época, levaria de três a cinco anos e foi concluído em três meses. Isso, para mim, foi algo incrível", acrescenta o cientista.
Matéria feita por María Elena Navas BBC News Mundo
Ref.: https://www.bbc.com/portuguese/
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