Postado em 30/03/2021 21:48 - Edição: Marcos Sefrin
Pesquisadores já identificaram 208 espécies de cobras, cerca de 80 de lagartos, 40 de lagartos sem patas, sete de tartarugas e quatro espécies de jacarés no Cerrado. Muitas são endêmicas.
Muitas espécies sofrem com a perda de habitat antes mesmo de serem conhecidas pela ciência. Máquinas agrícolas destroem tocas e queimadas não controladas devastam áreas abertas onde vivem espécies que se aquecem ao sol.
Répteis são vitais para os ecossistemas do Cerrado: impedem a superpopulação de insetos e roedores e também servem de alimento para aves e mamíferos. Ao protegê-los, protegem-se outras espécies também.
Quando Cristiano Nogueira viu pela primeira vez a criatura escondida em uma toca, pensou ter encontrado uma “espécie perdida”. O Stenocercus tricristatus, um pequeno lagarto com manchas bicolores, não era visto há 175 anos, e era conhecido pela ciência apenas por um único espécime mantido em uma gaveta no Museu de História Natural de Paris. Um colecionador dinamarquês, Peter Claussen, o havia coletado em algum lugar no centro do Brasil naquela época, mas ninguém sabia exatamente onde.
O herpetologista e biogeógrafo Cristiano Nogueira tinha viajado ao Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, logo após uma queimada, que é o melhor momento para encontrar animais que normalmente estão ocultos por gramíneas.
Após um estudo mais aprofundado no laboratório, Nogueira e seus colegas determinaram a verdadeira identidade do animal. “Não era a espécie perdida”, afirma. “Este belo lagarto espinhoso, com dois chifres em cima de sua cabeça, era uma nova espécie”. Isso foi em 2019.
Em 2000, quando Nogueira propôs pela primeira vez a pesquisa de campo como estudante de pós-graduação, seus professores lhe disseram que ele não encontraria muita coisa. “Essa era uma visão baseada em dados pobres e amostragens ruins”, disse. “Era considerado um terreno baldio”.
Stenocercus canastra, nova espécie de lagarto encontrada no Parque Nacional da Serra da Canastra. Foto: Cristiano Nogueira.
Tesouro de biodiversidade
O Cerrado está entre as savanas mais biodiversas do mundo, cobrindo 2 milhões de quilômetros quadrados – porém, até apenas 20 anos atrás, pouco se sabia sobre sua vida selvagem além das espécies mais comuns ou icônicas. Pouquíssimos zoólogos já haviam estado lá, e aqueles que estiveram concentraram-se principalmente em florestas de galeria, ignorando a savana que compõe 61% do bioma.
Nogueira persistiu em sua missão. Convenceu seus professores e obteve mapas do Ministério do Meio Ambiente que identificavam áreas não estudadas. Era justamente para lá que iria. Um pouco como herpetologista, um pouco como explorador, ele passou quatro anos viajando em busca de répteis na savana composta de pastagens, rios cobertos de palmeiras, florestas baixas e planaltos secos. Nogueira identificou 57 novas espécies de répteis no Cerrado de 1998 a 2008.
Parque Nacional da Chapada do Veadeiros: platôs e chapadas despontando sobre os campos são comuns no Cerrado; criadas há milhões de anos, essas formações isoladas ajudaram no desenvolvimento de espécies endêmicas. Foto: Cristiano Nogueira.
Até agora, cerca de 208 espécies de cobras, 80 de lagartos, 40 de lagartos sem patas, sete de tartarugas e quatro de jacarés foram registrados nas listas oficiais de espécies na região – que não param de crescer. “O grande número de espécies de lagartos e de cobras catalogadas no Cerrado equipara-se ao que encontramos na Amazônia, que por sua vez é muito mais protegida”, diz Guarino Rinaldi Colli, herpetologista da Universidade de Brasília.
Os pesquisadores descobriram que a maioria das serpentes do Cerrdo habita áreas amplas. Algumas áreas chegam a abrigar mais de 50 espécies, espalhadas por um mosaico de paisagens, enquanto outras espécies ocupam apenas nichos em determinados habitats. Já as áreas úmidas são povoadas pelos jacarés, conforme esperado. Os pastos são o lar da maioria dos lagartos – provavelmente porque são heliotérmicos, ou seja, que regulam a temperatura do corpo ao se aquecerem ao sol. “Eles são como pequenas baterias solares”, explica Nogueira.
Os répteis mais curiosos do Cerrado podem ser os anfisbênios, ou lagartos sem patas. São predadores subterrâneos, de até um metro de comprimento, com membros minúsculos, olhos pequenos e crânio em forma de espada. Eles se locomovem através de túneis, caçando na escuridão.
Considerado um tesouro de biodiversidade, o Cerrado brasileiro é uma das 36 áreas no mundo que necessitam de proteção imediata, de acordo com a ONG Conservação Internacional. Isso se deve a uma perigosa combinação de fatores: muitas espécies endêmicas raras e seus habitats estão sendo rapidamente dizimados pelas atividades humanas. É importante ressaltar que mais de um terço dos répteis do bioma – cerca de 38% – não vivem em nenhum outro lugar da Terra.
Tentar salvar essas espécies, segundo Nogueira, é uma corrida contra o tempo: “Estamos estudando o Cerrado e sua fauna, descobrindo novas espécies ao mesmo tempo em que elas estão sendo apagadas do mapa”.
Espécime de Philodryas livida registrado no início dos anos 2000 no Parque Nacional das Emas – um dos últimos registros conhecidos de indivíduos vivos dessa espécie. Seu habitat, pastagens cobertas por gramíneas, está rapidamente desaparecendo com a agricultura mecanizada. Foto: Cristiano Nogueira.
Xenodon nattereri, espécie endêmica do Cerrdo, relativamente rara nas coleções. É encontrada em áreas de vegetação aberta, onde se alimenta de ovos de lagarto. Foto: Cristiano Nogueira.
Impactos humanos
Muitas espécies sofrem com a perda do habitat nativo. “Os répteis são particularmente afetados pela conversão para campos de cultivo, porque passam parte de suas vidas no subsolo”, explica Marcio Martins, zoólogo da Universidade de São Paulo. “Vários lagartos e cobras vivem em tocas, pequenos buracos ou cupinzeiros, onde estão protegidos do calor e do fogo, e onde descansam e depositam ovos”. Segundo ele, isso inclui também espécies grandes, como cobras de 1,8 metro de comprimento. Elas frequentemente “compartilham” essas cavidades e túneis com os tatus, roedores ou outros animais que as escavam. As cobras, por exemplo, põem as ninhadas de ovos sob cupinzeiros.
Um problema são as máquinas usadas pelos agricultores, que, ao revirar o solo, destroem essas casas subterrâneas. “Mais da metade dos animais desaparecem quando se cultiva soja ou outras culturas, sendo as espécies especialistas as mais afetadas”, afirma Martins. “Restam apenas alguns generalistas: cascavéis, talvez uma espécie de lagarto”. A diversidade cai para quase zero nas plantações de eucaliptos.
A pecuária também impacta muito a biodiversidade, já que as pastagens plantadas com gramíneas invasoras substituem a vegetação natural e os resíduos animais poluem os cursos d’água.
Em geral, as espécies de Cerrado que vivem em áreas úmidas ou ao longo de rios tendem a estar em melhor forma do que aquelas que habitam pastagens onde equipamentos agrícolas pesados podem operar. “Não se pode colocar um trator em um brejo”, disse Nogueira.
O gênero de lagarto de areia Psilops era antes encontrado apenas em uma pequena área na Caatinga; esta espécie, Psilops seductus, foi registrada pela primeira vez no Cerrado, no alto da Serra Geral do Tocantins. Foto: Cristiano Nogueira.
Cerrado em chamas
Outra séria amaça aos répteis do Cerrado é o fogo. As chamas fazem parte do ciclo natural do bioma, de modo que plantas e animais se adaptaram para sobreviver às queimadas, tendo convivido com seus impactos durante milênios. Alguns animais e aves são capazes de escapar; outros, incluindo muitos répteis, refugiam-se em buracos ou tocas. Uma espécie de lagarto papa-vento, ao ressurgir de seu refúgio em uma área queimada, usa camuflagem para se esconder de corujas e outros predadores: sua cor marrom e preta imita uma folha carbonizada.
Agora, porém, a ordem natural foi perturbada devido à ação humana, alterando o ecossistema de modo significativo. Os incêndios queimam com muita frequência, muito calor, ou na época errada do ano, colocando estas plantas e animais bem adaptados em perigo. Em seu estado inalterado, isto é, antes da colonização europeia, partes localizadas do bioma queimavam talvez a cada poucos anos, ou uma vez por década. Hoje, algumas áreas queimam a cada ano, ou durante a estação errada. “É uma questão de tempo e escala”, diz Nogueira. Os cientistas estão correndo para entender o novo regime de incêndios e seus efeitos sobre a vida selvagem.
A mudança climática e o desmatamento tornaram a região muito mais quente: as chuvas estão diminuindo e a seca cada vez mais acentuada está alimentando incêndios mais frequentes e intensos que destroem grandes pedaços de habitat. Com a paisagem atravessada por fazendas, ranchos, cercas, estradas, vilarejos e cidades, quase não há lugar para onde os animais possam fugir.
O agronegócio contribui para que o problema do fogo se acentue. A maioria dos produtores queimam suas terras anualmente para limpar a área para o plantio, incinerando gramíneas altas que as vacas não comem.
Alguns cuidadores de parques nacionais realizam queimadas controladas como forma de evitar queimadas maiores e mais destrutivas. Outros suprimem o fogo limpando as zonas de deflagração, mas isso também tem um custo. O material advindo dessa limpeza se acumula em áreas não queimadas e, quando uma área protegida é incendiada, as árvores se tornam combustível para alimentar ainda mais o fogo.
Incêndio controlado no Parque Nacional de Brasília: as queimadas são realizadas em trechos próximos a estradas, ou na divisa com áreas protegidas. As queimadas são acesas com tochas a gás, e são acionadas durante a estação certa (início da estação seca), no início da manhã ou final da tarde, quando há pouco ou nenhum vento, e depois são gerenciadas de modo a não se espalharem sem controle. Foto: Cristiano Nogueira.
Gerenciamento de incêndios
Durante a última década, os biólogos Martins e Colli contaram com uma legião de pesquisadores para compreender os impactos evolutivos do fogo sobre as criaturas do Cerrado. De acordo com Martins, alguns destes estudos fazem parte de um programa de combate ao fogo do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) que está se expandindo para considerar estratégias de manejo de fogo ecologicamente equilibradas.
Desde 2018, Marcio Martins trabalha no Parque Estadual do Jalapão, em Tocantins, coletando dados sobre os efeitos do fogo em lagartos e sapos e comparando a diversidade entre áreas queimadas e não queimadas. Ele pesquisou os moradores antes das queimadas prescritas em áreas protegidas, onde os guardas florestais usam lança-chamas para incendiar o mato. Martins voltou enquanto a terra ainda queimava para procurar pelos animais que não conseguiram chegar ao subsolo.
Em um estudo de 12 dias, ele localizou apenas sete mortes de lagartos em uma enorme área onde também contou 830 sobreviventes de oito espécies diferentes. “A porcentagem de lagartos que morrem [nestes incêndios controlados] é muito baixa”, disse Martins. Os dados de mortalidade não estão disponíveis para cobras porque elas habitam áreas maiores.
Anos de pesquisa na área altamente cultivada de Águas de Santa Bárbara, no estado de São Paulo, produziram resultados semelhantes. “Os dados mostram quase nenhum efeito na riqueza ou abundância de lagartos ou sapos”, disse ele.
Entretanto, estas eram queimadas controladas em savanas naturais relativamente protegidas – não em áreas cultivadas ou fazendas. Estes estudos, ainda, não avaliaram os impactos de queimadas maiores e mais mortíferas. A pesquisa de campo de Colli em áreas semi-florestadas descobriu que estas espécies de lagartos não se saíam tão bem. Em geral, os incêndios florestais favorecem as espécies de pastagens amantes do sol. Sob este novo regime, os habitantes da floresta diminuem.
O estudo de Colli, que abrange várias paisagens, revelou que algumas áreas precisam permanecer livres de fogo por períodos mais longos. “Estamos tentando convencer os gestores de áreas protegidas a implementar programas de gerenciamento de incêndio que imitem os ciclos naturais”, relata o biólogo.
O biólogo Marcio Martins fotografando uma Bothrops pauloensis. Foto: Joao P. Alencar.
Conservando o que resta
Em 2008, Nogueira viajou para a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins em busca de lagartos que vivem nas pedras. Ele subiu um morro isolado e ali avistou uma trilha ondulada sobre a areia que terminava em uma pequena touceira de plantas, onde encontrou um exemplar de Bachia oxyrhina enterrado no solo arenoso – uma nova espécie, um membro minúsculo e sem patas de uma família de lagartos conhecidos por suas pálpebras inferiores transparentes, o que lhes permite enxergar com os olhos fechados. O B. oxyrhina é um bom exemplo do porquê a conservação é tão desafiadora nos habitats fragmentados do Cerrado: a espécie nunca foi encontrada em outro local.
A altitude e a topografia determinam o que vive nesta paisagem altamente variada, e a forma como o planeta e a vida evoluíram juntos explica por que tantos animais ocupam pequenos trechos. A mudança tectônica que criou a Cordilheira dos Andes de 6 a 10 milhões de anos atrás também criou mais de mil platôs entre 900 e 1.500 metros de altura, isolando um número substancial de espécies endêmicas de répteis.
“Embora a proteção total das faixas remanescentes da vegetação nativa do Cerrado seja importante para a conservação da fauna e da flora, a conservação de um mosaico de áreas menores de habitat vital para estas ‘espécies lacustres’ é igualmente importante”, alerta Nogueira.
“O planejamento para futuras áreas protegidas deve considerar a evolução dos cenários de mudança climática”, recomenda Colli. Ele sugere que as “espécies de borda”, que vivem na periferia dos ecossistemas, podem ter as melhores chances de sobreviver à mudança climática porque são pré-adaptadas à resiliência sob condições de mudança.
Espécie não descrita do gênero Ameiva. Pesquisadores temem que muitas espécies de répteis do Cerrado possam se perder devido à conversão da savana em terras agrícolas antes de serem conhecidas pela ciência. Foto: Marcio Martins.
Infelizmente, há pouca ação governamental para a conservação do Cerrado brasileiro. Hoje, apenas 3% do bioma está sob proteção rigorosa; outros 5% estão “protegidos” como áreas de uso misto onde as pessoas vivem, cultivam, constituem fazendas e são legalmente obrigadas a conservar a terra – embora haja pouco cumprimento ou fiscalização. Segundo o tratado internacional da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), 17% das terras do planeta deveriam ser conservadas até 2020.
Entretanto, ainda faltam informações básicas necessárias para conservar muitas espécies de répteis: “comportamento, reprodução, tamanho da população e status de conservação são pouco conhecidos para muitos desses animais”, diz Colli. “E provavelmente existem espécies ainda não descobertas”, acrescenta.
As cobras são vitais para os ecossistemas, impedindo a superpopulação de roedores. Os lagartos também desempenham um papel importante, controlando os insetos, inclusive as pragas que impactam as culturas. São ainda um alimento básico para aves e outros animais.
Salvar os répteis poderia salvar mais espécies. “Eles podem agir como ‘espécies substitutas’”, diz Colli, já que muitas aves e mamíferos lidam melhor com as mudanças ambientais do que as cobras, sapos e lagartos com quem compartilham a terra. “Portanto, se os protegermos, protegeremos outros também.”
Para Nogueira, ainda há oportunidade de fazer algo, mas não por muito tempo. “É mais barato proteger do que restaurar, mas precisamos agir antes que não haja mais nada a proteger”.
Apostolepis dimidiata, cobra endêmica do Cerrado. Foto: Marcio Martins.
Imagem do banner: Uma Apostolepis não descrita encontrada no recém-criado Parque Nacional da Chapada das Mesas, no Maranhão. Foto: Cristiano Nogueira.
Matéria feita por Sharon Guynup em 30 Março 2021 | Traduzido por Carol Marchi - Matéria publicada por Xavier Bartaburu
Ref.: https://brasil.mongabay.com/
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