Postado em 25/10/2018 11:56 - Edição: Marcos Sefrin
O populismo de direita se apropria do silêncio e dos traumas desses grupos para negar ou diminuir seu sentido e suas dores, formando um bolsão de adeptos
O silêncio tem lá sua beleza – seja o efeito estético na construção literária como, por exemplo, o silêncio das mulheres ideais de Heinrich Heine, retratadas em Noites Florentinas; seja o efeito musical, como na música TheSound of Silence de Simon & Garfunkel; e também na pesquisa histórica, que, por sua vez, vê no silêncio dos documentos matéria para produção da pesquisa. Tais são os limites da beleza do silêncio, para além disso o silêncio é monstruosidade.
O silêncio é linguagem – inclusive o silêncio traumatizado – e possui manifestações coletivas ou individuais. Cada sujeito ou sociedade manifesta o seu silêncio de uma forma diferente, pois o trauma, e acima de tudo, a vida são diferentes, são únicas. Por isso, quando falamos em silêncio, falamos em um acontecimento universal, mas não perdemos de vista a forma individual.
O silêncio pode ser opressão ou forma de resistência. O silêncio do oprimido e do traumatizado são linguagens constrangidas. Eni Orlandi observou que, se a língua é dialógica, ao silenciar sobre algo, o locutor (falante) prende o interlocutor (ouvinte) no quadro discursivo limitado por esse silêncio. Alguns interlocutores, entretanto, não se satisfazem com o silêncio e outros querem que assim permaneça. O primeiro tipo não se constrange no querer saber e busca extrair aquilo que foi silenciado – mesmo que esse silêncio possa ser um limite inultrapassável, uma memória que relembrada doa muito ao locutor. O segundo tipo nega atribuir qualquer significado ao silêncio do trauma, inferindo a ideia de que se trata de uma mentira – afinal, se a pessoa se cala é porque não tem o que dizer, ou então está mentindo – forçando que o silêncio e o esquecimento permaneçam.
A ânsia em saber tais silêncios possui várias razões: estética, histórica, política ou simplesmente curiosidade despretensiosa. Quando se quer saber do trauma (ou seu silêncio) deve-se ter todos os cuidados, pois podemos estar usando a linguagem do silêncio e do trauma como ferramenta, ou seja, como utensílio técnico. Gadamer afirmou que “a linguagem não é nenhum instrumento, nenhuma ferramenta. Pois uma das características essenciais do instrumento é dominarmos seu uso, e isso significa que lançamos mão e nos desfazemos dele assim que prestou seu serviço”. A linguagem do silêncio jamais pode ser colocada de fora do percurso comunicativo, caso contrário ela esvazia os significados humanos que o mundo possa ter. Para o filósofo alemão é no aprendizado da fala que crescemos e conhecemos o mundo, os outros e a nós próprios. Mas isso não é dizer que designamos o mundo que nos é familiar pelo uso de um instrumentário já dado, mas sim que conquistamos a familiaridade e o conhecimento do próprio mundo, tal como ele nos apresenta.
Assumir que a linguagem é uma ferramenta, é excluir a comunicação e a familiaridade da própria função da comunicação. Quando algo se torna familiar a nós abrimos a possibilidade de uma opinião comum e, consequentemente, uma compreensão recíproca das pessoas. Quando os limites do outro, ou melhor, o silêncio do outro, se torna familiaridade, a comunicação instaura-se, possibilitando entendermo-nos uns aos outros.
Assistimos, nos tempos atuais, os abusos da linguagem como ferramenta. Os silêncios e os traumas são significados conforme a necessidade ideológica do discurso em favor da política. Como a linguagem das redes sociais e das mídias de comunicação não possuem intenção de formar familiaridades e consequentemente não comunicando nada de novo, não se atinge o conhecimento de mundo, dos outros e de nós mesmos. Os traumas do Oriente Médio, da África, das periferias de Aracaju ou de Porto Príncipe, viram disputa ideológica desprovidas de qualquer sentimento de alteridade. Enunciar o trauma e os silêncios desses traumas é uma forma de “utilizá-los” com finalidade pragmática, e não humanizadora.
De um lado existe o silêncio forçado, modelo clássico de opressão, facilmente identificável na retórica autoritária, que lança mão de uma linguagem negacionista, visando diminuir ou anular as dores de grupos sociais menos favorecidos. Essa monstruosidade silenciadora não é uma linguagem que quer unir ou formar familiaridades, ela busca cooptar adeptos que tem mais ou menos os mesmos pensamentos, mas não haviam ainda encontrado plataforma ou uma linguagem que os identificasse e desse forma aos seus pensamentos. O resultado são simplificações grotescas: “bandido bom é bandido morto”; “não existe racismo”; “quem quer enriquecer trabalha”; “Deus fez o homem e a mulher, travestis são aberrações”; “direitos humanos para humanos direitos”. No Brasil, o populismo de direita se apropria do silêncio e dos traumas desses grupos para negar ou diminuir seu sentido e suas dores, formando um bolsão de adeptos. Manter o silêncio dos grupos sociais menos favorecidos é uma plataforma política de intimidação e sustentação de discursos que corroboram com o status quo. Mantêm o que pensam dessa forma em seu conforto mental de não precisarem pensar ou se relacionar com o diferente. Tudo deve manter-se como sempre foi, com meus iguais.
Do outro lado temos grupos que utilizam os traumas e os silêncios dos oprimidos pelo racismo, pela homo e transfobia, da opressão sofrida pelas classes trabalhadoras e pelos desabrigados, para sustentar uma retórica que a alavanque. O populismo de esquerda brasileiro sempre se utilizou desse artifício. Esses não são movidos pelo legítimo pensamento de não deixar o trauma ser esquecido, não buscam dar voz a dor motivados pela ética de lembrar da história das vítimas, como movimento da consciência de abrir-se para outro – seja sujeito, sociedade ou o tempo – em geral que muitos nunca vivenciaram ou experimentaram. Esses grupos querem a proximidade dos simpáticos e dos componentes desses grupos, para lançarem a si próprios na visibilidade política.
Os sem-terra e teto, os negros, os transexuais, os indígenas entre tantos outros, têm sua representação balizada ou usurpada, o silêncio tomado de suas gargantas ou obliterado pela negação, continuam os legando à margem. Existe pouca radicalização na forma de entender os silêncios desses grupos, a política se tornou um meio de conciliação, não deles próprios, mas alguém os mediando. O favelado, o índio, o travesti, o negro quilombola, o sem-teto, o trabalhador sem terra ainda não foram ouvidos, pois a eles não foram dados representação, seu silêncio ainda não foi ouvido. O silêncio deles foi instrumentalizado.
Entender os limites do trauma e do silêncio e assim torná-lo familiar, deve ser feito no sentido da kritik (crítica) de Kant, ou seja, perceber os limites cognoscíveis do objeto (silêncio), perceber que no silêncio ou na confusão da linguagem do traumatizado há um entendimento limitado – mas não impossível de ser familiar, comunicável. Essa limitação é justamente o limite da pretensão de conhecer o “como foi”, “como aconteceu”. A dor do outro é sempre a dor do outro, podemos apenas nos compadecer, conquistando familiaridade junto a esse outro.
Com isso não queremos afirmar que os oprimidos devem silenciar, longe disso. Sempre há a necessidade de que algo seja dito, e muito ainda precisa ser dito. Defendemos a ideia de olhar o silêncio e o trauma com outros olhos, não instrumentalizar o sofrimento de outrem. Enquanto seres éticos, não devemos ultrapassar esses limites, pois ao fazê-lo – seja para a pesquisa histórica, para a construção da arte, ou retórica política – recairemos, novamente citando Kant, no seu efeito estético, o prazer no que é belo, um “silêncio belo” que supostamente lança luz à obscuridade, trazendo à luz a verdade e o convencimento. Enaltecemos a nós e nossas convicções e a alteridade se perde, o outro desaparece diante do meu eu.
Os limites do silêncio devem ter sentido hermenêutico, ou seja, querer entender o outro, ampliar os nossos horizontes, perceber que no silêncio do trauma há sempre a dor, mal-estar, ou também, como chamou Eni Orlandi, o ruído da comunicação. Entendendo isso, o outro se torna familiar, e a linguagem utilizada para comunicar a dor deixa de ser instrumental, ganhando dimensão humana. O silêncio compreendido traz para o nosso próprio horizonte as lembranças de nossas dores, angústias e ansiedades – com o traumatizado, silenciamo-nos juntos, em respeito – e essa é a profundidade do minuto de silêncio, dos funerais ou das homenagens aos mortos. O silêncio não é para ficarmos com os nossos pensamentos, mas para que a familiaridade seja conquistada e o sentido da solidariedade apareça.
Entendemos a solidariedade como a capacidade de aprender a se entender com os demais, é o que une um indivíduo ao outro. O conceito de solidariedade significa que, apesar dos desvios, apesar das perturbações, não se pode abandonar o entendimento do outro. Em suma, o familiar é solidário. E o que nos tem mais faltado é uma solidariedade legítima.
*Luís Alfredo Galeni é formado em História pela Unesp, campus de Franca, e mestre em Estudos Literários pela UFRGS.
Ref.: https://diplomatique.org.br/
Ocorreu um erro de reconhecimento de sua tela. Atualize a página.