Postado em 22/03/2019 07:22 - Edição: Bruno Wisniewski
A representação dos professores, no caso brasileiro, vem sofrendo uma reviravolta um tanto violenta nos últimos anos. É importante questionar esse fenômeno, dada sua radicalização e rapidez. Em pouquíssimo tempo, a sociedade deixou de nos ver como miseráveis, passando a nos ver como pessoas poderosíssimas, capazes de doutrinar e influenciar crianças. Mais do que a família, mais do que as Igrejas e mais do que a grande mídia, quem doutrina, agora é o professor
A representação dos professores, no caso brasileiro, vem sofrendo uma reviravolta um tanto violenta nos últimos anos. É importante questionar esse fenômeno, dada sua radicalização e rapidez. Em pouquíssimo tempo, a sociedade deixou de nos ver como miseráveis, passando a nos ver como pessoas poderosíssimas, capazes de doutrinar e influenciar crianças. Mais do que a família, mais do que as Igrejas e mais do que a grande mídia, quem doutrina, agora é o professor.
Representar significa enxergar e criar impressões acerca de algum fato, fenômeno ou pessoa. No entanto, existe um abismo entre enxergar algo a seu modo e retratar fatos, fenômenos ou pessoas fielmente como são. Nosso ponto é que dificilmente esse abismo, esse intervalo entre o “achar que é” e o “é”, é abordado com a devida firmeza.
Há pouquíssimo tempo, dizer que era docente significava ganhar um olhar de pena ou de compaixão em troca. Era como se a conversa precisasse mudar de rumo. A conversa ganhava um tom de desconforto, e certamente não por culpa do professor que dialogava. Mas quem é professor sabe bem como é. A melhor palavra é essa: desconforto. Era como se, ao dizer a profissão, todas as portas do mundo se fechassem, fechando, também, todas as perspectivas.
Agora, não ganhamos mais um olhar de pena ou de compaixão. O olhar, agora, é de desconfiança. Saímos de um patamar apoiado na benevolência que partia dos professores – afinal, o magistério nunca foi visto como emprego, mas sim como uma espécie de exercício de bondade que era convertido em alguns trocados. Algo como caridade remunerada – para um patamar no qual predomina a desconfiança e a raiva contida. Em poucos anos, passamos de propagadores da esperança a alvos permanentes de desconfiança. Temos, hoje, tentativas para que estudantes filmem nossas aulas e nos denunciem, como se o ato de dar aula significasse, por outro lado, uma prática criminosa.
Há algumas semanas, ao entrar em sala para apresentar o programa de Geografia deste ano, incluí o seguinte tópico: formação política do Brasil. O tópico era exatamente esse. Tomei todos os cuidados para evitar acusações. Falar em formação política significa falar sobre colônia, império e República, coisa que todo brasileiro deveria saber. Ainda assim, não fui poupado de olhares e sorrisos com o intuito de tentar me intimidar. Grande parte da população, dadas as atuais influências, não consegue mais diferenciar política e política partidária. E, sendo professor, automaticamente, sou de esquerda e entro em sala de aula com o exclusivo objetivo de doutrinar jovens estudantes. É assim que sou visto.
A década de 1930, por exemplo, foi marcada pela construção de importantes instituições de ensino, dentre as quais podemos destacar o Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Apesar das críticas ao período, não se pode negar que havia um movimento no sentido de mostrar que a formação de professores e a educação seriam prioridades. Era algo concreto, e não apenas no discurso. De lá para cá, além do desprezo com que sempre fomos vistos devido a toda a precariedade existente, passamos a ser vistos como ameaça e como profissionais desprovidos da capacidade de entender de educação, que é o nosso trabalho. Chegamos ao cúmulo de ver um ex-ministro da Educação sendo recebido por um atual deputado que nunca chegou perto de entender algo sobre Educação. Além de não ter formação na área, ele nunca foi afeito a tal campo de estudos e pesquisa. Fomos dominados pelo achismo. Não somos o que somos; somos o que a sociedade acha que somos, e assim seremos tratados.
É importante que surjam análises sobre esse intervalo entre a benevolência e a desconfiança. Sabemos bem que representações nunca estão 100% corretas, e a visão sobre os professores deixa isso transparente. As duas estão erradas. No entanto, o que deve ser alvo de espanto é o intervalo muito curto em que essas duas visões se sobrepuseram. Tal mudança se deu, de modo efetivo, em pouquíssimos anos. Por quê?
Por que os professores passaram a ser vistos como ameaças, se antes eram vistos como figuras bondosas e caridosas? E por que os professores nunca foram vistos como trabalhadores comuns? A pesquisa nos arquivos e nos livros especializados mostra a associação entre o magistério e a bondade, entre o magistério e a figura maternal (que, inclusive, foi o nome de uma das etapas da educação infantil: Maternal). A bibliografia, sobretudo a bibliografia do campo da História da Educação, nos mostra que docentes precisam de um atributo: ser boas pessoas. Isso deveria ser parte de um pacto civilizatório, e não critério único para se exercer uma profissão. O campo educacional é científico, em primeiro lugar. É importante que sejamos boas pessoas, mas, tratando-se de uma profissão e de uma ciência, é igualmente importante dominar preceitos científicos (e mesmo combatê-los, quando necessário for).
O olhar de pena foi substituído por um olhar de raiva, e isso é muito sério. Muito grave. A resignação que acompanhava o professor foi substituída por um poder infinito, e que não existe. A resignação, o fato de aceitar tudo, estava nos baixos salários, nas noites mal dormidas em finais de bimestres, na ausência de vida social, enfim, tudo isso era visto como constantes na vida dos docentes. Havia a concepção, no senso comum, de que todos os professores do planeta ganhavam miseravelmente mal, eram insones e não saíam de casa. Era uma representação de uma vida reclusa e mal vivida. Passa-se a uma ideia oposta: a ideia de que ganhamos muito para a nossa carga de trabalho, a ideia de que somos “folgados” (palavras oficiais do governo) e a ideia de que poderíamos ter menos férias do que temos. Do dia para a noite, os professores se tornaram seres superpoderosos e dotados de todos os privilégios possíveis sem que nenhuma mudança nas condições de trabalho tenha ocorrido.
Esse debate sobre esse intervalo entre a miséria e o superpoder de doutrinar, mesmo competindo com todos os fatores externos à escola, sempre foi um debate fechado para especialistas. Não é uma conversa do dia a dia, até porque é algo muito complexo. É um fenômeno que ainda carece de estudos aprofundados. O mesmo vale para a representação dos professores, ou seja, para a forma como os professores são enxergados pela sociedade. A representação é um conceito sério, não é uma conversa sobre amenidades.
No entanto, mostrar que estamos diante de representações equivocadas é uma tarefa urgente. É fundamental mostrar que o professor é um trabalhador como outro qualquer e que o magistério, assim como qualquer outra profissão, exige uma série de responsabilidades. Precisamos dialogar com as pessoas que não se especializaram no assunto e precisamos romper com perspectivas academicistas, pois o que temos fora do meio acadêmico carece de atenção e diálogo. A história nos mostra que com representação não se brinca.
*Giam C. C. Miceli é professor da rede municipal de Itaboraí, licenciado em Geografia, com pós em Educação e mestrado em História da Educação.
Matéria feita por por Giam C. C. Miceli em 19 de Março 2019 - Imagem feita por Alves
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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