Postado em 01/07/2019 11:10 - Edição: Marcos Sefrin
Um de cada quatro casais decidiu dormir em camas distintas. São gente meio estranha ou visionários de uma nova tendência? Vários especialistas analisam os prós e contras.
Aconchegar-se na cama em posição de colherzinha com seu parceiro parece a forma perfeita de terminar o dia. Mas o que acontece a partir daí? Roncos de leão, disputas ferozes pelos lençóis ou pontapés dignos de um ninja acabam com o romantismo de dormir acompanhado. Um de cada quatro casais já decidiu dormir separado. São gente meio estranha ou visionários de uma nova tendência?
Antes da Revolução Industrial, o medo da escuridão não era uma questão trivial. Perigos reais e míticos espreitavam os dormentes, que dormiam juntos para combatê-los. Famílias inteiras e até hóspedes compartilhavam o mesmo colchão, conseguindo assim uma agradável sensação de proteção e fortalecendo sua coesão como grupo. Foi o que constatou A. Roger Ekirch, professor de história da Virginia Tech que dedicou sua carreira a estudar os hábitos de sono de nossos ancestrais. Também é preciso levar em conta um condicionamento econômico: naquela época não existia a Ikea e uma cama custava os olhos da cara.
No entanto, os reis e nobres, com alforjes cheios e castelos que os blindavam dos perigos noturnos, dormiam em luxuosas alcovas separadas. Um costume que chegou até nossos dias e que alguns plebeus começam a imitar. E aqui surge a pergunta: é mais saudável dormir acompanhado ou sozinho?
Os estudiosos do sono concordam que pernoitar em camas separadas e até mesmo em quartos diferentes garante um descanso melhor. “Dormir é como descer os degraus de uma escada, primeiro chegamos ao sono superficial, depois ao profundo. Se tivermos ao lado alguém que faça algum ruído, que se mexa, que dê uma sacudida com as pernas ou que ronque, passaremos de um sono mais profundo para um mais superficial. Durante a noite não vamos notar, mas sim no dia seguinte, quando tivermos a sensação de não ter descansado corretamente”, explica Eduard Estivill, neurofisiologista, pediatra e fundador da Clínica do Sono Estivill.
Embora o ideal seja dormir em camas separadas, em muitos casos isso não é possível, reconhece Estivill: “Em nossa cultura isso é complicado, porque nem todo mundo tem dois quartos para poder dormir e há mais questões envolvidas”.
Os condicionantes culturais
Essas “outras questões envolvidas” têm a ver com a construção do ideal de casal atual. Deitar na mesma cama se tornou uma característica definidora daqueles que compartilham a vida juntos. “Dormir como um casal é algo que não se faz com mais ninguém, nem com amigos, nem com filhos. É um ato de intimidade no qual são trocados abraços, carícias ou conversas ao terminar o dia. É um espaço único e exclusivo de calor e proteção. Mas não deixa de ser cultural. Há muitos outros atos em um casal que criam essa intimidade”, comenta a psicóloga Francina Bou.
Esse peso cultural faz que muitas vezes a decisão de dormir separados seja percebida como um sintoma de crise da relação ou como uma decisão que costuma ser tomada por casais de idade avançada. “É um estereótipo, realmente não há motivo para ver um problema em não compartilhar a cama. Também não tem nada a ver com a idade, há muitos casais idosos que dormem bastante felizes abraçados, compartilhando a cama e o erotismo”, ressalta Ana Fernández, sexóloga e diretora do Centro Sexológico Astursex.
Mas o costume está tão arraigado que algumas pessoas fazem ouvidos surdos aos roncos e chutes de sua cara metade. Segundo um estudo publicado em 2016 no The Journal of Biological and Medical Rhythm Research, são muitos aqueles que, embora não descansem tão bem, sentem-se mais incômodos caso se separem de seus parceiros durante a noite. “Para eles, dormir separados representa uma ruptura nas rotinas do sono e um desvio dos pontos de referência cruciais para os padrões de sono. Em vez de promover uma boa noite de sono, dormir sozinho pode dificultar o sono, com a ausência do companheiro e o vazio da cama que perturba o ambiente e o ritual associados ao ato de dormir untos”, diz o estudo.
No entanto, outros estudos demonstram que uma má noite de sono nos faz olhar com antipatia para nosso parceiro no dia seguinte, ao som do tilintar da colherzinha com a qual mexemos um café bem forte. Demonstram também que várias noites sem pregar o olho podem até levar a uma separação. Um estudo realizado pela empresa de colchões Silentnight e pela Universidade do Leeds (Reino Unido) concluiu que em 29% dos casais, um parceiro acusa o outro de não deixá-lo dormir. O especialista britânico em sono Neil Stanley é um dos mais ferrenhos defensores da separação de camas. Ele assegura que aqueles que dormem sozinhos têm um risco 50% menor de sofrer uma crise em sua relação.
E não se trata apenas de que um esbarro perturbe o sono profundo ou de que uma disputa pelo edredom nos desperte bem no momento em que sonhávamos ter ganho na loteria. Deve-se levar em conta que, como assinala Estivill, 30% da população tem problemas relacionados com o sono. E alguns deles podem ser realmente irritantes para o casal. Na lista se destacam os roncos − que, por sua natureza sincopada, interferem no sono alheio com especial virulência. “É um problema muito sério, que faz com que muitos casais venham ao consultório”, diz Fernández.
Outro problema que perturba o descanso de um casal é a diferença de horários ou de costumes. Ter turnos de trabalho diferentes é uma pedra no sapato para poder dormir adequadamente. Porque se um se levanta às seis e o outro vai dormir às duas, o ideal de dormir juntos racha. E existem ainda outros tipos de problemas, que têm mais a ver com os costumes de cada qual, mas com os anos de convivência ganham um peso que não pode ser minimizado: um gosta de ver televisão até tarde, o outro prefere ler com uma luz que irrita seu companheiro; um gosta de acordar com o rádio, mas o outro odeia... São pequenos detalhes que são deixados de lado nos primeiros tempos de convivência, mas depois acabam cobrando a conta.
A tomada da decisão
Quando existe uma dificuldade como os turnos ou os roncos, conta-se com um casus belli para propor a separação de camas. Mas, havendo ou não um problema que justifique a decisão, ainda temos certas reservas, devido à carga cultural já mencionada, para colocar na mesa essa questão delicada.
O doutor Eduard Estivill se depara com essa dificuldade em seu consultório, quando sugere que algum paciente se mude de quarto. “Geralmente eles entendem, porque são inteligentes no sentido de que quando você explica os motivos e eles mesmos veem que podem incomodar o parceiro, aceitam tranquilamente o que recomendamos”, comenta.
“Todo casal precisa ter a capacidade de negociar e de chegar a um consenso sobre pontos de vista. Se uma das partes é inflexível e não há acordo, então aí sim isso pode se transformar em um problema. A necessidade de descansar é algo vital e não tem sentido pensar em uma convivência baseada no mal-estar de uma das duas pessoas que compõem a relação”, afirma Fernández.
Aqui, como em todas as questões relacionadas ao casal, é preciso chegar a um acordo. “O negativo é interpretar essa decisão como uma rejeição. E isto ocorre porque culturalmente descrevemos um casal como duas pessoas que dormem juntas, caso contrário, isso não aconteceria”, comenta Bou. Esta psicóloga também sugere, caso não se chegue a um acordo, a possibilidade de uma solução intermediária: que os parceiros durmam alguns dias juntos e outros, separados. “No início da semana, quando é necessária mais energia para o trabalho, poderiam dormir separados. E, a partir da quinta ou sexta-feira, juntos. Isso também pode ser um incentivo para o casal, que embora durma separado pode, ocasionalmente, transgredir essa norma.”
E o sexo?
Associamos as relações sexuais à cama, por isso parece que, se não nos deitarmos bem juntinhos, elas serão afetadas. Mas não é assim, como demonstram alguns estudos: 38% dos casais britânicos que decidiram dormir em camas separadas depois de ter compartilhado o mesmo colchão disseram que suas relações sexuais melhoraram, bem mais que os 24% que viram o número de encontros tórridos diminuir.
“O sexo transcende a cama. Os casais que costumam ter uma vida sexual mais rica usam outros lugares para seus encontros: a ducha, a cozinha, o sofá... O principal inimigo da vida sexual é a rotina e, nesse sentido, dormir separados pode servir para prolongar a surpresa”, assinala Bou.
Nessa direção convergem as teorias da psicoterapeuta belga e autora do livro Sexo no Cativeiro: Como Manter a Paixão nos Relacionamentos, Esther Perel, que propõe que os casais preservem um grau de intimidade que atice a paixão. Para a autora, a proximidade em um casal está sobrevalorizada, porque não permite gerar um espaço erótico que incentive o desejo.
Como ocorre com tudo que está ligado ao mundo das relações humanas, não se pode generalizar, e cada casal é que deve decidir se compartilha ou não o colchão, sem que isso − vale a pena a redundância − lhe tire o sono. “Deveríamos nos perguntar: podemos dormir juntos? É compatível com nosso trabalho? Com nossa saúde? Se for assim, ótimo, e se não, não nos apeguemos ao clichê de que o casal se define por dormir junto, e desfrutemos, inclusive, de transgredir a norma de vez em quando”, conclui Bou.
Matéria feita por MARÍA LÓPEZ VILLODRES dia 30 JUN 2019 - 18:29 BRT
Ref.: https://brasil.elpais.com/brasil/
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