Postado em 17/04/2021 15:07 - Edição: Marcos Sefrin
LITERATURA E POLÍTICA
Suas mentalidades, como a de muitos outros africanos e africanas, foram moldadas por desejos de liberdade e pela luta anticolonial
Em 1956, o escritor nigeriano Wole Soyinka não sabia que trinta anos depois, em 1986, receberia o Nobel de Literatura. Na época, ele pensava em se alistar para lutar do lado dos húngaros em sua revolta contra o que ele considerava uma agressão soviética. Era uma prova não só do seu interesse no drama da existência – um dos motivos de receber o Nobel – mas era também uma prova de como vivia o drama. Depois de receber treinamento como recruta no Exército da Rainha, Soyinka desertou, convencido pelo seu pai que achava mais justo fazer algo pelo seu próprio país, então ocupado pelo Reino Unido.
Seu interesse em mudar o mundo por meio da força não terminou ali. Na década de 1950 o Quênia ardia com a Insurgência Mau Mau. Soyinka, e outros estudantes das colônias britânicas que estavam na metrópole, liam notícias e discutiam possibilidades de descolonização. Uma luta anticolonial em forma de guerrilha era inspiradora para os estudantes. O fogo violento dos campos de batalha quenianos servia de faísca para o fogo da esperança em corações e mentes que buscavam liberdade.
Nesse período, enquanto Soyinka estudava na Inglaterra, outro intelectual africano, o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, assistia seus conterrâneos serem enviados para campos de concentração onde eram torturados e assassinados. Thiong’o, ainda no ensino secundário, não sabia que o conflito travado entre Mau Mau e ingleses não seria o último de sua vida. A guerra que marcou sua juventude acabou por ser um ponto de ancoragem para sua combativa literatura.
O sol do império se pôs na Nigéria em 1960 e no Quênia em 1963. A África tornava-se livre nas décadas de 1960 e 1970. Mas realmente livre? Ambos os autores, em seus respectivos países, viveram o fim do colonialismo e o surgimento dos Estados africanos independentes. Suas mentalidades, como a de muitos outros africanos e africanas, foram moldadas por desejos de liberdade e pela luta anticolonial. Mas os sóis das independências, como escreveu o escritor costa-marfinense Ahmadou Kourouma, traziam novos tipos de problemas.
Na Nigéria, Soyinka assistiu governo após governo entrincheirar-se em autocracias e voltou a se deparar com ditadores durante a Guerra de Biafra (ou Guerra Civil da Nigéria). Desta vez, os líderes autoritários não eram brancos. Mesmo assim, por tentar evitar o conflito, Soyinka foi punido com 22 meses de prisão.
No Quênia independente a guerra era passado. Era, também, assunto proibido. Não se podia questionar a penúria dos veteranos anticoloniais Mau Mau, nem os privilégios dos quenianos que haviam lutado pelos colonialistas. Também não se podia questionar por que as oposições foram suprimidas. Ngũgĩ wa Thiong’o fez tudo o que o governo não queria em sua vida universitária, na escrita, no teatro e na educação popular. Resultado: um ano de prisão sem acusação formal na prisão de segurança máxima de Kamiti.
(Cristina Gottardi/Unsplash)
Os tempos coloniais terminaram, mas os métodos coloniais persistem. Engana-se quem pensa que um tempo chamado de pós-colonial é sinônimo de fim do colonialismo. Este segue por outros meios. Escritores africanos como Wole Soyinka e Ngũgĩ wa Thiong’o são testemunhas dessa persistência. E isso está presente em suas literaturas.
Suas obras estão recheadas de informações históricas, biográficas e políticas acerca de seus respectivos países e as injustiças e crimes cometidos em diferentes períodos de sua história. Suas narrativas possuem denúncias e são testemunhos das diferentes formas de autocracia no continente africano. Ambos os autores produziram memórias sobre seus tempos de prisão, escreveram romances e peças de teatro inspirados em diversos acontecimentos da história do continente.
Em obras como Devil on the Cross (Diabo Na Cruz, tradução direta) de 1980 e Matigari de 1986, ambos de Ngũgĩ wa Thiong’o, o autor argumenta que os trabalhadores devem se armas, lutar contra as elites, derrotar o capitalismo e o imperialismo para finalmente a África ser livre. Ele vê no imperialismo europeu a base de muitos problemas africanos e acredita que a resistência violenta contra poderes violentos pode fazer florescer um mundo melhor.
Soyinka possui outras receitas. Em sua peça Opera Wonyosi, de 1977, ele lança mão da sátira. O personagem Imperador Boky é uma caricatura de Jean-Bédel Bokassa, autodeclarado Sua Majestade Imperial da República Centro-Africana. O homem fictício, diferente do homem real, não tem medo de declarar o que pensa. Imperador Boky detesta os democratas, os adoradores de habeas corpus e os amantes de direitos humanos. Boky não tem medo de dizer ao leitor quem ele é e Soyinka não tem medo de dizer quem é Bokassa.
Soyinka e Ngũgĩ não são os únicos. A literatura africana está cheia de escritores e escritoras que enfrentaram diferentes formas de poderes autocráticos. Os ditadores africanos conseguiram influenciar uma geração de autores e, de certo modo, são culpados pelo grande número de obras com algum grau de pensamento engajado no interesse pela liberdade, igualdade e direitos humanos. Mas os ditadores, ao feitio do Imperador Boky, detestam escritores. E a África está cheia de exemplos de perseguições.
Soyinka teve de fugir dos assassinos do ditador Sani Abacha, que executaram Ken Saro-Wiwa. Thiong’o se exilou para escapar do ditador Daniel Arap Moi. Gabriel Okara, Cyprian Ekwensi e Chinua Achebe sobreviram ao conflito de Biafra enquanto militavam pela liberdade do país. Tsitsi Dangarembga foi presa no Zimbábue por protestar contra o governo. Es’kia Mphahlele foi proibido de dar aulas pelo governo sul-africano por não aceitar um ensino racista. Nawal El Sadaawi foi presa pela sua militância em prol do feminismo durante o governo do egípcio Anwar al-Sadat.
Ser escritor em África é uma profissão que vem com perigos. Curiosamente, as antigas metrópoles colonizadoras (ou atuais neocoloniais) serviram de porto seguro para diversos artistas africanos. O colonizador, que negava liberdade na colônia, permite-a dentro de casa (desde que não se sinta ameaçado). Porém, a elite colonizada que se tornou a elite nacional ao raiar da independência vê ameaças por todo o lado. E quem paga o preço são as populações subalternas e os dissidentes.
A escrita pode ser uma arma no combate das ideias. O escritor africano pode justificar, detratar, criticar, mostrar outras perspectivas, possibilidades e experiências dos mais variados temas presente no universo africano. Ocorre que a maldição do colonialismo de uma ordem global desigual e exploratória, de interesses privados contra interesses públicos, coloca uma questão aos intelectuais africanos e também aos estudiosos de África. Em cenários de autocracia é possível não lidar com políticos e suas políticas que causam morte e sofrimento?
Em 1956, Soyinka devia estar contente com os ventos da descolonização. Não devia estar à espera de golpes, ditaduras, guerras, prisão e exílio. É 2021, Soyinka tem 86 anos e Thiong’o, 83. Suas vidas coincidem com a queda do colonialismo e o início da libertação da África, ainda incompleta. As literaturas africanas dos escritores dessa geração são atestados da longa história das lutas sociais na África pós-colonial.
A literatura africana contemporânea nasceu dentro da luta anticolonial. Até hoje, apesar do seu reconhecimento em África e ao redor do mundo, enfrenta diversos Imperadores Boky nas mais diversas esferas da vida. Ler literatura africana é conhecer África, seus intelectuais, as variadas formas de se combater as autocracias, e como buscar dignidade e liberdade em nossas vidas.
Matéria feita por Bruno Ribeiro Oliveira dia 12 de fevereiro de 2021 - Bruno Ribeiro Oliveira é doutorando do Programa em História e Artes da Universidade de Granada e mestre em História com ênfase em história de África pela Universidade de Lisboa.
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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