Postado em 09/07/2019 09:43 - Edição: Marcos Sefrin
O governo Temer não mediu consequências e impôs o aumento dos preços dos combustíveis, acompanhando a evolução dos preços internacionais. Assim, buscou elevar a rentabilidade da Petrobras e das companhias internacionais que operam nesse setor à custa da sociedade brasileira. Apesar do tom pretensamente popular adotado por Jair Bolsonaro em sua campanha, a estratégia da política de preços da Petrobras se manteve rigorosamente a mesma quando ele assumiu o governo. E pior: alguns instrumentos utilizados pelo governo Temer e pela Petrobras – como a subvenção dos preços e a maior utilização das refinarias da estatal brasileira – foram sumariamente eliminados.
Assim como em 2018, no governo Temer, vimos agora, nos primeiros quatro meses do governo Bolsonaro, a população brasileira pagando preços mais caros para comprar gasolina e diesel, enquanto as empresas estrangeiras comemoram a existência de um pacote imenso de venda de ativos, incluindo as próprias refinarias (estas que a Petrobras faz questão de subutilizar).
Mas, se a Petrobras opta por não utilizar suas refinarias, por que ela vende os combustíveis produzidos por estas a preços internacionais, visando, segundo a própria estatal, aumentar seu lucro? Se assim fosse, não faria sentido produzir mais gasolina e diesel para a empresa aumentar sua rentabilidade? São os tempos de “verdades relativas”, que seguem o interesse de determinados atores.
É evidente que se trata de uma escolha aumentar os lucros desse setor empresarial ou manter os preços controlados para não castigar as maiorias. A Petrobras não precisa seguir os preços internacionais; o Brasil tem petróleo suficiente para não depender dessas oscilações do mercado internacional, pode fazer sua própria política.
O impacto na sociedade dos aumentos sucessivos nos preços dos combustíveis é uma das melhores expressões da lógica dos ataques do governo liberal – liderado não por Jair Bolsonaro, mas, como ele mesmo disse, por seu “Posto Ipiranga”, o ministro da Economia, Paulo Guedes – contra o povo brasileiro. A reforma da Previdência, o contingenciamento nos gastos em educação e outras medidas que provocam o empobrecimento da população, o desemprego e o colapso das políticas públicas, tudo isso aumenta o fosso da desigualdade que envergonha o país.
Vamos ser claros: são eles – esse governo e as grandes empresas internacionais – os responsáveis pela promoção da barbárie, do sofrimento das massas, do desespero de quem tem de garantir o prato de comida para sua família, de um sentimento coletivo de insegurança, da crescente insatisfação popular.
A aposta de que podem fazer tudo sem reação por parte dos que são espoliados, de todos aqueles que vivem do próprio trabalho, é uma aposta perigosa. A história nos mostra que as multidões se mobilizam não por razões ideológicas, mas para responder aos problemas concretos postos como um desafio para sua vida na sociedade. Não estão longe as mobilizações de 2013, cujo estopim foram os aumentos nas tarifas de transporte coletivo.
A contradição maior é entre um capitalismo financeirizado, que busca maximizar seus lucros a qualquer custo, ignora as consequências sociais de suas práticas e promove a barbárie na vida em sociedade, e a defesa da qualidade de vida por parte de todos que vivem do próprio trabalho.
A imposição pelo assim chamado “mercado” – isto é, pelos grandes grupos econômicos e financeiros que controlam o governo – de uma lógica devastadora na tentativa de colocar toda a vida social, em suas várias e múltiplas dimensões, a serviço da maximização de seus lucros submete a vida e a rotina da população pela coerção, uma vez que não há margem de negociação. É o que está acontecendo com os preços do petróleo, primeiro com Temer e agora com Bolsonaro. Uma prova de que, apesar de suas diferenças na forma, a visão econômica liberal permanece intocável.
A disputa pela apropriação da riqueza produzida na sociedade, por parte dos trabalhadores, não se limita ao valor da remuneração do salário e da previdência, ainda que essas questões continuem centrais. Essa disputa envolve também, e cada vez mais, o que veio a se definir como o acesso a bens públicos comuns, isto é, a oferta pelo poder público, financiado com dinheiro dos impostos, de serviços e equipamentos que se tornaram indispensáveis para a vida moderna, especialmente para a vida nas cidades. Educação, saúde, transporte, moradia, saneamento básico, segurança, lazer, cultura e segurança alimentar são políticas públicas que se incluem na composição dos recursos indispensáveis para atender às necessidades das maiorias.
O princípio político da luta em defesa dos bens públicos comuns, enraizada nas preocupações cotidianas da existência concreta, articula inúmeras demandas específicas e dá sentido aos movimentos, às lutas e aos discursos que nos últimos anos se opuseram à racionalidade neoliberal em várias partes do mundo.1
As lutas atuais contra a universidade capitalista (nos Estados Unidos e no Chile), a favor do controle popular da distribuição de água (em Cochabamba e na retomada da gestão privada das águas pelos governos municipais em várias partes do mundo), os movimentos de ocupação de terras e imóveis urbanos, a ocupação das praças, as novas primaveras, todas essas manifestações são buscas coletivas de defesa dos bens comuns e de formas democráticas novas de expressão do povo.2
E é essa convergência de distintas lutas, contra a espoliação, o racismo, as discriminações de todo tipo e o colapso das políticas públicas, que dá a liga para a expressão conjunta. As mobilizações deixam de expressar interesses específicos e individuais e assumem reivindicações comuns, mudam de natureza, seus atores se convertem em atores políticos.
Em todo o mundo a ascensão de novos líderes de esquerda se dá pela defesa da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs. Eles partem de uma análise da realidade de degradação das políticas públicas e propõem aberta e publicamente que a riqueza produzida pela sociedade não vá mais para os banqueiros, mas seja redirecionada e investida na melhoria e criação dos bens públicos comuns, dos salários, de uma renda básica para todo cidadão e cidadã.
São tempos de ruptura, de recuperar a democracia e radicalizá-la. E para isso é preciso disputar as interpretações da realidade, enfrentar as narrativas que imobilizam, resgatar o sonho, as utopias, a coragem e o entusiasmo. Como disse uma militante dos direitos humanos do Recife, se não há democracia, não há espaço para apresentarmos nossas demandas…
Matéria ffeita por Silvio Caccia Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Jean-Luc Mélenchon, L’Ère du peuple [A era do povo], Fayard/Pluriel, Paris, 2017.
2 Pierre Dardot e Christian Laval, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, Boitempo, São Paulo, 2017.
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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