Postado em 16/07/2018 12:53 - Edição: Bruno Wisniewski
Num país de excelências e excrescências, claro!
Em tempos de Lava Jato, é no mesmo plano do "coaching" que as atividades de "compliance" surgem como o mais novo fetiche dos meios empresariais. Não basta ser, é preciso parecer limpinho, e fornecer essa imagem pública tem seu preço. Deve ser por isso que tem operador jurídico que sequer espera a aposentadoria ou exoneração para já anunciar publicamente seus futuros serviços na esfera privada. Sem contar o maravilhoso filão das delações premiadas.
No campo estatal, o mercado da moralidade também está aquecido. Muitos convites para palestras, premiações e “em-bi-eis”. Não só, têm-se ainda jantares de gala, diplomas honoris causae, badalações no exterior e até no Principado de Mônaco. Ah, somem-se campanhas publicitárias, “runnings” contra a corrupção, como o de Fortaleza, onde até os cones de rua foram roubados (furtados).
Esse perfil medíocre é enriquecido com abaixo-assinados, petições eletrônicas, vídeos de agentes públicos para canais do YouTube ou feitos para viralizarem no WhatsApp ou Facebook. Dez medidas contra a corrupção. Greves de fome (mesmo fakes). Anuncia-se que policiais federais estão montando, com seus candidatos a cargos eletivos, uma "bancada da lava-jato", sob o slogan "o brasileiro tem sede se mudança". Até o "japonês da federal" escreveu um livro de memórias. Timing é tudo!
Diante de tanta ênfase na defesa da ética, vendida como bem de consumo, cumpre indagar: estarão os fornecedores realmente entregando o produto ofertado? Um país melhor, mais desenvolvido, mais justo, menos desigual, mais honesto?
Não é de hoje que a deficiente organização da Sociedade Civil é usada como justificação para salvacionismos. Foi para derrotar a "ameaça subversiva" que os militares deram o golpe de Estado em 1964, acabando com as liberdades, eliminando oponentes e instituindo uma sangrenta ditadura. Para "caçar marajás", Collor inaugurou uma sequência de governos neoliberais e privatizantes. Movimentos com um objeto, em tese, nobre - cuja concretização, contudo, serviu para garantir bons negócios e favorecer grupos minoritários em detrimento da maioria da população brasileira.
É, infelizmente, o que ocorre nessa cruzada contra a corrupção com ares sacrais. Mas a realidade é diferente. É a velha empulhação do povo brasileiro, manejada pelo conservadorismo para manter o status quo, e não por acaso apoiado pela grande mídia, sócia habitual dessas “joint ventures”.
A primeira questão é que corrupção não é causa, mas consequência. Ninguém que leve a sério o combate à corrupção pode ignorar essa verdade. O desvio de recursos públicos se desenrola em um ambiente de clientelismo e falta de vigilância popular, que só a ignorância e as carências da coletividade permitem. Em nações desenvolvidas, as populações mais educadas, menos vulneráveis a escassez, adquirem uma consciência mais ampla de sua própria cidadania, e se portam com mais vigor na proteção daquilo que, sendo público, pertence a todos, e não a alguns.
Fato conexo, mas não menos importante, é que não existe procuração para o exercício popular da cidadania. Ou ela é exercida pelo povo, ou temos um povo tutelado. No último caso, nossos (pro)curadores, tomando a si a tarefa de vigilância popular, precisam estar em um plano inumano de ética e retidão. Infelizmente, não é o que se vê no que se convencionou denominar a "juristocracia" brasileira. Não se pode reconhecer, em nossos “juristocratas”, nenhuma autoridade em matéria moral, tantos são os exemplos de privilégios, compadrios com escritórios de advocacia, impunidade a colegas, tráfico de influência, auto concessão de benefícios, auxílios e mordomias, alguns deles instituídos a margem da lei.
Mas a coisa vai além. Uma casta de homens probos, investidos de uma missão moralizante, jamais andaria de braços dados com grandes grupos de comunicação de massa do Brasil. Não apenas para não correr o risco de se parcializar, como também para evitar que as famílias que controlam esses meios se valessem da espetacularização do processo penal para perseguir os representantes políticos de ideias e projetos contrários aos objetivos dos grupos de interesse que financiam a própria mídia.
Para que pudéssemos acreditar nas boas intenções de nossos cavaleiros templários, teríamos que perceber um mínima atenção para com a manutenção da empregabilidade da população, pois os trabalhadores e as economias nacionais dos países em desenvolvimento não podem nem merecem ser, simplesmente, massacrados. Mas é só ver o que aconteceu aos direitos trabalhistas e à engenharia nacional para constatar que tal cuidado não houve.
Também seria necessário verificar se há reciprocidade no intercâmbio de informações penais sob a forma de cooperação jurídica internacional, pois não é justo que comportamentos de corruptores estrangeiros sejam tratados de uma forma menos drástica nos países desenvolvidos, enquanto nos países em desenvolvimento impliquem até mesmo desnacionalização da sede e dos ativos de nossas maiores empresas.
Sopesadas tais diretrizes, é forçoso reconhecer que o povo brasileiro está sendo ludibriado. Estão se valendo do combate à corrupção, como bandeira, para usurpar do povo brasileiro o poder de decidir o seu destino. Enquanto a maior liderança popular da América Latina se encontra na condição de preso político (por força de uma simulação de julgamento que já representa um fiasco aos olhos do mundo), nossos ativos estão sendo doados. O petróleo e o gás natural contidos na camada de pré-sal foi repassado a petrolíferas estrangeiras. A Embraer foi incorporada pela Boeing. Projetos importantes para a defesa da soberania nacional, como o submarino nuclear, foram praticamente descontinuados. Os orçamentos da educação, pesquisa científica e saúde foram reduzidos, enquanto vultosos favores tributários foram concedidos a quem mais tem e mais sonega.
O processo político está interrompido e sequestrado, via mídia, pela judicialização da esfera pública. No lugar de milhões de cidadãos e eleitores debatendo e deliberando sobre os problemas e desafios reais, o debate público foi restringido a julgamentos morais, seletivamente pinçados pela mídia ou falsamente polêmicas os nas redes sociais.
Como decorrência da desesperança com nosso futuro, os brasileiros estão saindo aos milhares para viver em outros países. O melhor de nossa juventude, nossos pesquisadores, artistas, intelectuais e empreendedores migrando. Os indicadores de confiança na economia e na empregabilidade em vertiginosa queda. A capacidade de investimento público exaurida pelo rentismo. Como se vê, a vida do povo não parece tão promissora e bem sucedida, na comparação com o êxito pleno do mercado de “compliance” e derivativos da moralidade “juristocrática”.
Os manifestoches desfilando na avenida no carnaval carioca, conquanto paródia bem humorada de nosso passado recente, omitem uma trágico vaticínio. No Brasil, país das excelências, excrescências e aparências, a farsa se repete como História. Mais uma vez, estão nos vendendo gato por lebre.
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-integrante da Interpol em São Paulo - Este texto é de responsabilidade da Associação Artigo 5º - Delegados e Delegadas da Polícia Federal pela Democracia, da qual faço parte.
Ref.: https://jornalggn.com.br
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