Postado em 05/03/2019 17:30 - Edição: Bruno Wisniewski
"Somos uma sociedade composta por indivíduos livres, ou somos uma sociedade hierarquizada”, questiona antropólogo
Imagem: Cena de Another Brick In The Wall/Pink Floyd
Em dezembro de 2018, em um ato para comemorar a eleição ao lado de Jair Bolsonaro (PSL), o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) prometeu a criação de mais escolas militares. Cerca de dois meses depois, no dia 15 de fevereiro, a gestão anunciou a implementação de dois novos colégios militares no estado: em Volta Redonda e Miguel Pereira.
Segundo o secretário da Educação Pedro Fernandes o projeto, que deverá chegar a 100 unidades, será gerenciado pelo Corpo de Bombeiros e pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Para o antropólogo e coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roberto Kant a medida é preocupante e aumentará a desigualdade educacional no estado.
Em um artigo publicado na quarta-feira (27) no jornal O Globo, Kant compara a proposta de governo para a educação com um dilema fundamental e histórico da República brasileira: “Somos uma sociedade composta por indivíduos livres, iguais perante a lei, merecedores da aplicação a todos das leis e regras de maneira uniforme? Ou somos uma sociedade hierarquizada, em que os direitos são desigualmente distribuídos entre os segmentos sociais, não somente em função da posição econômica que os mesmos ocupam, mas em função de sua posição social e familiar?”.
Kant explica que a lógica dos colégios militares de uma “sociedade hierarquizada” se opõe a proposta de “sociedades liberais, individualistas e igualitárias”.
“Precisamos de mais e melhores escolas? Claro que sim. Mas precisamos de escolas que socializem nossas crianças e nossos jovens para a convivência na sociedade civil ou na caserna [local designado para o alojamento de soldados]?”, questiona.
“É evidente que a ordem que se reproduz na caserna não se assemelha à ordem que se reproduz na sociedade civil. Na caserna e obedece-se a ordens emitidas por comandos fundados na antiguidade e na hierarquia. Em qualquer situação, sempre haverá precedência para quem comanda e conflitos entre desiguais são peremptoriamente reprimidos e, eventualmente, punidos. Exercícios rotineiros de “ordem unida” moldam corpo e espírito para atender ao pronto comando”, analisa Kant.
“Adquire-se assim, um “espírito militar”, construído na concepção de que o todo é sempre maior e mais relevante que as partes, fundado na hierarquia e disciplina militar, estritamente repressivas na administração dos conflitos, talvez necessário e inestimável instrumento das Forças Armadas na defesa aguerrida da Pátria, mas certamente estranho ao convívio quotidiano civil do mercado”, completa o professor.
Kant lembra ainda que a chamada “socialização militar” não é para todos os indivíduos da sociedade, em outras palavras, nem todos se adaptam a ela, “como demonstram etnografias já realizadas nesses ambientes, em que a disciplina militar sobrepõe-se à orientação pedagógica”.
“A hierarquia e disciplina presentes nas escolas militares é estritamente destinada àqueles que as escolhem, fundada na absorção dos interesses individuais pelos interesses e objetivos corporativos, na obediência a ordens, na repressão dos conflitos e na consequente diferenciação e prevalência identitária dos militares sobre os “paisanos”, ou seja, a sociedade civil” pontua.
“Já a hierarquia e a disciplina da ordem civil, supostamente destinada a todos os membros da sociedade, é fundada no controle da liberdade individual e caracteriza-se pelo controle disciplinar exercido pela aderência a regras, pela tolerância com a diferença e com o aprendizado nos processos de administração de conflitos entre iguais” completa.
Logo, ao invés de estimular o avanço da educação pública e até evitar a evasão no ensino, a escolha pela educação militar poderá excluir ainda mais uma parcela da população da educação de qualidade.
“[Os] colégios privados continuarão a socializar os membros das elites que a elas tem acesso em práticas de civilidade muito distintas da ordem militar. Restarão assim, em breve, três segmentos desigualmente socializados/educados da população brasileira: os das escolas privadas, os das escolas públicas de gestão militar e os que não tiveram acesso ou não se adaptarem ao regime militar”.
Kant pontua que é óbvio que o país e o estado do Rio de Janeiro precisam de mais e melhores escolas, mas a forma como a nova gestão pública se propõe a resolver apresenta um dilema histórico:
“Ora, a República brasileira enfrenta há muito um dilema sério: somos uma sociedade composta por indivíduos livres, iguais perante a lei, merecedores da aplicação a todos das leis e regras de maneira uniforme? Ou somos uma sociedade hierarquizada, em que os direitos são desigualmente distribuídos entre os segmentos sociais, não somente em função da posição econômica que os mesmos ocupam, mas em função de sua posição social e familiar?”.
Segundo Kant, esse dilema se “somos uma sociedade composta por indivíduos livres e iguais perante a lei, ou uma sociedade hierarquizada” tem impedido que a sociedade brasileira adote padrões de comportamento válidos desejáveis para todos.
“Estes padrões, quando universalizados, colocam-se como opção de obediência a regras a serem seguidas, não por medo do castigo na ocasião de seu descumprimento, mas simplesmente porque ela assegura, em última análise, que os direitos dos que as obedeceram estão garantidos pela ordem vigente. Ou seja, os indivíduos iguais em direitos estão em potencial oposição por terem interesses distintos, o que gera situações de inevitável conflito; e quem segue as regras que se aplicam a todos de maneira uniforme vai ser protegido por tê-las obedecido, quando afrontado por um seu concidadão ou pelo Estado”, explica.
“Já numa sociedade hierarquizada, formada por segmentos sociais juridicamente desiguais, mas complementares, o direito não se aplica de maneira uniforme a todos, pois seria injusto. O que se impõe é a ausência do conflito, para que o todo harmônico não seja perturbado por ele. O todo prevalece sobre as partes! Conflitos entre iguais são tolerados, mas jamais quando ocorrem entre desiguais, que deve ser energicamente reprimido, pois isso implica destruir a ordem do todo e o própria totalidade social, que se fragmentaria inevitavelmente”, completa. Clique aqui para ler o artigo de Kant na íntegra.
Essa visão de sociedade hierarquizada faz lembrar o dilema enfrentado hoje na Índia. O sistema de castas, ou subdivisões sociais, determinado a partir da hereditariedade é apontado como um dos principais responsáveis pelo subdesenvolvimento no país. Apesar de já ter sido abolido pelo governo indiano, continua enraizado na cultura.
Ref.: https://jornalggn.com.br
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