Postado em 16/08/2018 10:43 - Edição: Marcos Sefrin
Para pessoas que não são conhecedoras da ciência política e de outros campos ligados mais diretamente às problemáticas do Estado
- como é o nosso caso -
Talvez seja difícil romper o silêncio nesse contexto para afirmar uma posição diante de tudo que está acontecendo no Brasil
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A palavra “política” hoje ganhou o centro. Ótimo se quem a pronuncia pouco sabe do que fala. Sim, porque talvez saber pouco seja o mais importante hoje em dia. Isso porque o que vemos nas redes sociais, por exemplo, são manifestações aparentemente democráticas daqueles que julgam saber tudo, saber mais, saber “A” verdade. O problema é que, com tanto saber já sabido, terminamos por colocar em risco a nossa capacidade reflexiva. Refletir em profundidade quem sabe requeira um mínimo de autocrítica e um reconhecimento de que sabemos pouco – ou, no mínimo – requeira um esforço sincero para reconhecer que existem diferentes modos de saber, dentre os quais o nosso é apenas mais um. Paulo Freire realmente está fazendo cada vez mais falta para o nosso país.
Para pessoas que não são conhecedoras da ciência política e de outros campos ligados mais diretamente às problemáticas do Estado – como é o nosso caso – talvez seja difícil romper o silêncio nesse contexto para afirmar uma posição diante de tudo que está acontecendo no Brasil. Entretanto, a difícil constatação de que o silêncio é igualmente uma ação – tanto quanto os gritos, os panelaços ou as cuspidas – faz com que em algum momento a condição paradoxal da ação de não agir se torne insuportável. Este é o caso da motivação que movimenta esta breve problematização.
O que ocorreu nos últimos meses no país é aterrorizante. Claro, muito do terror adveio do resultado, das imagens que assistimos estarrecidos dos rostos que animam a estrutura burocrática do nosso Estado, dos atos oriundos daqueles que dão vida a essa estrutura administrativa; mas muito mais aterrorizante é a dificuldade de uma reflexão e de ver o que de fato “alimenta” todo este contexto. E o que “de fato” alimenta e sustenta esse contexto? Por estarmos falando desde a psicologia – mais especificamente desde a psicologia social – vamos tentar desviar das discussões para as quais no momento ainda não nos sentimos seguros em enfrentar, mas que já foram razoavelmente debatidas por personalidades que merecem crédito, como é o caso do visionário diagnóstico feito por Boaventura de Sousa Santos, ainda em 2014, sobre a calorosa reeleição da presidenta do Brasil[1], ou o artigo não menos visionário de Pedrinho Guareschi, em meados de 2015[2].
O que nos consideramos bastante competentes para discutir no atual cenário – ainda que possa soar inusitado, mas nem por isso menos verdadeiro – é o seguinte: a nossa incapacidade de discutir o atual cenário – e, antes que os que leem possam tirar conclusões precipitadas: isto não é mais uma forma rebuscada e intelectualista de não se posicionar nem tampouco um relativismo cômodo.
Não parece haver como negar e silenciar sobre um fato que nos parece claro – como explicitado pelos pensadores citados acima – a Grande Mídia – hegemônica no nosso país e com poder, sim, não só para instituir o debate nacional, como também para torcê-lo a seu favor – parece não só ter sido a variável crucial que nos trouxe ao atual momento, como também quem forneceu grande parte dos subsídios valorativos e intelectuais que dão sentido às atuais discussões. Ou seja, parece ter sido ela quem articulou o fundo subjetivo que dá sustentação à figura do atual contexto. Claro que as práticas da Grande Mídia não se perpetuam apenas pela sua ação positiva – isto é, por aquilo que ela faz –, mas também por ações negativas – isto é, a omissão por parte de quem não impede que ela faça o que faz –, neste polo podemos estar incluídos todos nós. Muito bem, hoje em dia todo mundo fala de uma “crise política”, esta decorrente de uma “evidente decadência ética e moral” - seja lá o que isso signifique. Todo mundo fala, aliás, sobre inúmeras formas certeiras de resolver, de uma vez por todas, tudo isso que está acontecendo, afirmando que basta para isso adotar uma das receitas – provavelmente uma entre apenas duas. O que nos perguntamos aqui é se tantas certezas não são, justamente, o ingrediente fatal para o cenário atual e para essa ausência de soluções para onde estamos sendo empurrados. Em outras palavras, todo mundo tem tanto a dizer sobre tudo com tanta legitimidade que pode estar faltando espaços para dúvidas necessárias para que algo possa nos ajudar a criar ou retornar para o campo da reflexão, do debate, da produção de sentidos – isto é, dizer algo que tenha potência estética, potência de fazer sentir, ou seja, produzir algo que esteja efetivamente no terreno da política – e não estritamente no da moral. Enfim, se não há dúvidas, como podemos começar um diálogo produtivo? Se não há dúvidas, é possível pensar que há efetivamente política? Se a onisciência é o dom e a maldição dos deuses, a modéstia é a condição humana por excelência, e é por ser modesto que o ente humano precisa do discurso para fazer acontecer sua humanidade. E é assim que nasce a condição ética e política da existência.
NÓS, por exemplo, temos uma dúvida: de onde tantas pessoas bem intencionadas tiram tamanha certeza de qual seria o melhor destino institucional para o país? Ainda que talvez nós não tenhamos uma convicção inabalável de que o que até então estava aí fosse a melhor das possibilidades, ao acompanharmos a votação da nossa Câmara pela aprovação da abertura do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, qualquer possibilidade de certeza sobre pactuar com os novos rumos possíveis traçados pela atual oposição se esvaíram. Restaram-nos poucas dúvidas de que qualquer pessoa que tenha se percebido do mesmo lado de grande parte dos políticos apoiadores do impeachment não tenha se sentido, no mínimo, constrangida – e este talvez tenha sido o único resultado positivo do domingo de 17 de abril: uma fissura para fazer brotar dúvidas. Tudo bem, podemos até pensar que tenha sido apenas uma “aliança tática” entre telespectadores, Grande Mídia, capital financeiro e políticos profissionais, mas será que há uma linha estratégica que se sustente a parte de cada um de seus passos táticos? E, mesmo se houver tal possibilidade, podemos ignorar para que fim último cada um desses primeiros passos apontam? Mesmo que os fins justifiquem os meios, será que os meios – mesmo justificados – são capazes de produzir um fim do qual eles mesmos não façam parte?
Diante do que vimos na Câmara dos Deputados, quem sabe até estejamos optando por permanecer do lado que a história um dia poderá dizer ter sido errado, porém esta possibilidade de erro está nos parecendo a mais acertada neste momento, não só por confiarmos naqueles que, por ora, estão do mesmo lado que nós, mas principalmente por termos a convicção de que não queremos ser confundidos com aqueles que estão do outro lado dessa “grande divisão” – ainda que um dia se viesse a confirmar a correção desta última postura. Dizemos sem medo – a exemplo do que era dito nos idos dos anos 60 durante a efervescência francesa: “Mais vale estar errado com Sartre do que ter razão com Aron”. A história retorna, ainda que diferente – e é dessa errância que falamos aqui – aquela que não teme estar errada desde que seja por amor.
Que a sociedade seja rachada, a história seja rachada, os sentimentos sejam rachados, a vida seja rachada, não parece haver problema, tampouco muita contestação. Este é um movimento necessário, e é ele que produz as fraturas que se tornam brechas e que se desenvolvem cada vez mais quando o debate e o saber se expandem – sem se tornarem totais. De repente, nesse movimento, a pressão interna é finalmente liberada de forma abrupta e eis que estamos diante de um evento político. Por isso, problemático mesmo são as rachaduras artificiais e intencionalmente produzidas por mecanismos postiços, aquelas rachaduras que não aparecem para pluralizar, diversificar, dar novos rumos e se expandir para novas formas fragmentadas e estilhaçadas; rachaduras que não nos fazem retomar o caminho poético do viver. As rachaduras postiças e sintéticas – aquelas que apenas dividem momentaneamente para dominar – são lapidadas por um cizel fascista, que visa tão somente colar, unificar, fixar, estagnar, dar um fim. Estas rachaduras postiças que estão sendo produzidas começam por formar buracos negros e terminam por englobar o todo e suas ínfimas rachaduras outras, aquelas errantes e da ordem do que entendemos por política. É disso que estamos falando aqui: sobre uma plateia de pessoas de bem a aplaudirem personalidades que exaltam a tortura e torturadores, personalidades que reverenciam a família e seu deus único como se fossem cruzados a levar a salvação para toda a nação. Uma plateia telespectadora alimentada pela utopia trágica da primeira-dama ideal: aquela calada, porém de reputação respeitável e zelosa para com os filhos e o lar. NÓS não queremos acreditar que há um único Brasil – ou se houver, queremos pensá-lo como um país assim: contraditório, conflituoso, dissonante, diverso, plural, errante e, por isso, político. O Brasil que entendemos não é direito, é avesso, é torto e errante – assim como NÓS. Podemos não estar entendendo nada, mas queremos continuar sentindo que é possível nos mantermos errantes e que ainda podemos desfrutar de um movimento político que suporta formas desiguais, reagindo às mudanças de temperatura dos diferentes grupos, movimento que se expande com o calor do discurso e do debate democrático, que suporta as temperaturas extremas de incendiárias disputas e a atividade vulcânica típica de tempos sombrios. Queremos continuar rachando o instituído através dos nossos erros e diferenças, e não sendo divididos para cairmos na dominação do cizel de um saber hegemônico, autoritário e fascista. Acreditamos que a diferença entre uma ética da errância e uma ética da exatidão é a própria diferença. Para primeira não há caminho, mas possibilidades, tentativas, aventuras, ou seja, para primeira há diferenças. Para segunda, ao contrário, há apenas certeza e verdade; tudo aquilo que não for igual ao caminho exato, está condenado a estar do lado mau da história e, portanto, é legitimamente passível de ser eliminado.
Alguns dizem que o que está em jogo agora no Brasil é a disputa de dois projetos de país. Não entendemos se isso é exato ou não, mas parece mesmo sensato. Porém, se para sermos entendidos nesse texto nós tivermos de pensar que são dois – e só dois – os projetos que estão em disputa, forçaríamo-nos a dizer que não são só dois projetos de país, mas dois projetos de subjetividade o que também está em questão. Aqui não vamos tentar nos sintonizarmos com o debate sobre o que pode estar rolando nos bastidores do parlamento e de seus gabinetes, ou mesmo na cabeça dos nossos “representantes”. Como dissemos, NÓS ainda estamos engatinhando no entendimento lúcido a propósito da administração institucional do país, por isso, como pessoas singelamente interessadas na psicologia, vamos falar daquilo que é mais simples para nós, daquilo que podemos tocar com as mãos: a moral que está sustentando os atuais discursos. Ainda que NÓS não saibamos, a psicologia nos faz praticar um tipo de saber que nos instiga a refletir sobre as condições de possibilidade que nos levam a pensar o que pensamos e a fazermos o que fazemos, além de sentir o que sentimos. A psicologia não é exclusiva neste exercício, mas com certeza esta prática cabe muito bem a ela. A partir dela, questionamos sobre quais são os elementos de fundo que possibilitam que a figura se mostre como se mostra. Suspeitamos que o papel político da psicologia seja o exercício interminável de desestabilizar e movimentar as relações figura-fundo instituídas, consolidadas, necrosadas, eternalizadas. O que assistimos nesses últimos dias foi o avanço de uma antiga figura, arcaica, uma disseminação renovada e assustadora de um sectarismo e de uma ideologia preconceituosa, reducionista, autoritária, fascista. Essa moral – essa figura – que quer se impor como a última verdade tem um projeto claro: colocar tudo de volta em “seu devido lugar”. Para conseguir isso, é necessário que o “fundo” esteja sintonizado com suas pretensões. O fundo somos nós, a moral de cada uma e cada um, produzida e praticada no nosso cotidiano mais simplório. Quando começamos a ver com indiferença as qualidades aparentemente superadas de uma imagem feminina ligada ao sentido ideológico dos termos recatada, bela e “do lar” da tão esperada primeira-dama, precisamos ficar muito atentos, pois este pode ser o primeiro sinal de que a sintonização foi bem sucedida e que estamos prestes a achar conveniente o retorno a um modo exato de viver, a um único modo de ser, de sentir e de existir. É diante dessa situação que disputar a postura ética a ser assumida no atual cenário talvez desponte como uma das práticas políticas mais urgentes.
Agora seria bom aqui expormos os conceitos ética e moral. Em função da própria etimologia de ambos os termos, sua distinção torna-se fator problemático, porém necessário para qualquer debate minimamente sério, já que tanto “ethos” – do grego – quanto “mos” – do latim – têm o mesmo significado: hábito ou costume. Aqui, contudo, para NÓS, ética irá se referir à filosofia moral, isto é, à dimensão crítica de reflexão sobre os diferentes modos de agir – ou, em resumo, à reflexão crítica sobre hábitos e costumes, ou ainda, à reflexão crítica sobre a moral. Entendemos, assim, que a ética – mais do que um conceito – é uma dimensão, uma “ambiência”, um locus imaterial que sedia os assuntos humanos, constituindo-se, portanto, como um espaço eminentemente político no qual se travam as batalhas reflexivas diante da constatação da contingencialidade existencial dos mais diferentes modos do viver em comum. A política, assim, não se mostra no formato mais aparente que a legitima como política, isto é, no Estado, na administração pública; ela não está somente na Câmara dos Deputados e nos lugares legalmente constituídos. Todos esses espaços, nas palavras de Jacques Rancière, são destinados ao exercício da polícia, não da política. Isso porque, para ele, há política somente nos raros momentos nos quais essa ordem policial é perturbada, questionada e colocada na parede. Entendida assim, a política se dá num plano sutil, na disputa por modificar singularmente o que é visível, dizível, contável. Por isso agir politicamente é disputar não somente a figura, mas também – ou quem sabe prioritariamente – o fundo a partir do qual se evidenciam as figuras que podemos ver e sentir hoje. A grande mobilizadora de sentidos – a grande articuladora dos fundos, o cizel fascista produtor de rachaduras postiças – é a Grande Mídia, a qual, através da disseminação de discursos escancaradamente ideológicos, busca conformar e condicionar a nossa subjetividade a um modo único de ver, entender e sentir o que está se passando. Por isso a política está no cotidiano, nosso cotidiano é o nosso fazer político, a política está onde nosso corpo vive. Se a política é a dimensão da ação, da subversão do instituído, para ser como tal ela se torna indissociável de outra dimensão, a dimensão ética, já que, para subvertermos o instituído, temos de ter clareza sobre o que nos é dado, em cada contexto imediato, como instituído, como força policial a ser enfrentada. Em outras palavras, assim entendida, a ética seria uma dimensão constitutiva da própria humanidade do ser humano, sem a qual o ente humano correria o risco de deixar de sê-lo por tornar-se incapaz da ação política – isto é, da ação singular de tornar-se si mesmo, de acontecer-se no mundo. Assim, inclusive, até a ação paradoxal de não agir pode ser política. Às vezes pode não haver nada mais ensurdecedor do que um silêncio politizado.
Qual a relevância disso tudo para o atual momento que vivemos? Acreditamos que a relevância resida no fato de que a disputa política atual se dê em torno da ética. Isto é, em torno da disputa pelo ethos a partir do qual nos relacionaremos com o mundo. Há muitas possibilidades, a maioria delas beligerante, que buscam na eliminação do outro ou na imposição de sua própria moral a solução dos conflitos e das divergências. O ethos que propomos aqui é o da errância, aquele que não busca solucionar os conflitos, mas vivenciá-los na sua máxima intensidade, esgotá-los. O paradoxo insolúvel dessa perspectiva, contudo, se dá no seu encontro com o fascismo e a intolerância. Mas mesmo nesses casos, esta ética não almeja eliminar estes supostos inimigos, tão somente solapar sua pretensão de verdade, universalidade, eternidade e todos os outros traços ideológicos com os quais possam se revestir. Não há fascismo sem pretensão de verdade universal. Com isso, uma ética da errância não procura afirmar-se como “certa”, ao invés disso, apenas restituir a igualdade originária de todos os estilos possíveis de se viver, isto é, restituir aos viveres sua pluralidade e sua errância constitutivas. Entendemos assim que, o que estamos vivendo ultimamente é a ignorância de que o saber pouco sabe, de que o viver – diferentemente do navegar – não é preciso, mas errante. A Grande Mídia, como a maior difusora de verdades, é o grande sujeito fascista de hoje. É ela que, em grande parte, está destituindo da subjetividade sua potência, isto é, sua errância. Uma sociedade massificada, cada vez mais satisfeita de si e com menos dúvidas do que certezas é uma nação que sabe. E quem sabe não precisa refletir. Quem não reflete não precisa se espantar nem se expandir. Quem não se espanta não precisa ser modesto. Quem não é modesto pode impor sua moral. Quem impõe sua moral não é ético. Quem não é ético não pode ser político. Quem não é político é fascista. Quem é fascista mata ou deixa morrer. Se o amor e o viver deixam de ser os fundamentos primeiros da vida, que espaço restará à humanidade? NÓS não sabemos. Já não estamos entendendo nada.
Matéria feita por Os 'errantes' Lucia Stenzel *Doutora em Psicologia Social* & André Guerra** Mestre em Psicologia Social NO DIA 15/08/2018 11:41 - Créditos da foto: Reprodução
Ref.: https://www.cartamaior.com.br
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