Postado em 30/07/2020 12:00 - Edição: Marcos Sefrin
Introdução
O novo Coronavírus (SARS-CoV-2) é considerado a causa da pandemia relacionada a Covid-19 que, até 29 de julho de 2020, havia registrado mais de 16.7 milhões de casos confirmados e 651 mil mortes em todo o mundo (HOEK et al., 2004; WHO, 2020).
Esse caráter, associado à maior aceleração e interligação entre os lugares, verificada nas condições espaciais de um mundo globalizado, é interpretado a partir da importância das infraestruturas de mobilidade, como transporte aéreo, os portos internacionais e as malhas rodoviárias, que se tornam fatores fundamentais para a proliferação e propagação do vírus (GUIMARÃES e SPOSITO, 2020).
No território brasileiro, a história natural da Covid-19 se iniciou com a chegada do vetor humano, via transporte aéreo, em seguida, tornou mais suscetíveis as populações residentes na maior metrópole do Hemisfério Sul, e atualmente tem se interiorizado por todo o país movimentado pela rede urbana-rodoviária (GUIMARÃES e SPOSITO, 2020), e na Região Sul em particular, também pela centralidade de frigoríficos (HECK et al., 2020).
Neste trabalho, apresentamos uma discussão sobre a difusão espacial da Covid-19 no estado do Paraná, ampliando o debate sobre o arranjo organizado pela interiorização da doença a partir dos territórios da degradação do trabalho.
A covid-19 no estado do Paraná e o setor de frigoríficos
No estado do Paraná, a primeira interpretação da difusão espacial da Covid-19 apresenta o caráter urbano-rodoviário como já se tem verificado em diversos estados e regiões do Brasil (Radar COVID-19; NASCIMENTO JR. et al., 2020), e pode ser visualizado a partir da distribuição no território, apresentada na Figura 1.
Os dez municípios com o maior número de casos da COVID-19 em 11 de junho de 2020 foram: Curitiba (1541), Cascavel (930), Londrina (752), Maringá (319), Toledo (190), Cornélio Procópio (185), Cianorte (179), São José dos Pinhais (175), Pinhais (146) e Foz do Iguaçu (136) (Figura 1).
A observação destes dados explicita que a análise da disseminação espacial da Covid-19 não pode ser realizada utilizando apenas o quantitativo populacional de cada município, uma vez que, os cinco primeiros municípios em porte populacional apresentam valores distintos, e que por isso, pode-se afirmar que o Paraná já se encontra na fase de interiorização da doença, com uma parte do processo de difusão espacial da Covid-19.
Figura 1 – Distribuição espacial dos casos confirmados da COVID-19 no Paraná
Neste contexto, o estado do Paraná tem apresentado coeficientes de incidência – CI (medida para avaliar quantidade de casos a 100 mil habitantes por município, obtida pela razão entre os casos confirmados e a população residente) bastante significativos. A incidência da doença ocorre na ordem de 73,93% em todo estado, o que significa 295 no total de 399 já registram casos confirmados.
Além disso, no dia 11 de junho de 2020, os CIs para o Paraná oscilavam em média de 74/100mil, considerando valores de 0 (sem ocorrência da doença) até o valor máximo de 1851,3/100mil, que foi observado no município de Coronel Domingos Soares, no setor sul do estado (Figura 2).
Com exceção, do município de Coronel Domingos Soares, outros nove apresentam maiores CI´s Santo Antônio do Caiuá (806,7), Mirador (730,6), São João do Caiuá (609,0), Tamboara (600,3), Guaporema (450,7), Campo Bonito (431,1), Ibema (428,6), Cornélio Procópio (394,2) e Tuneiras do Oeste (379,5). Do universo dos municípios com incidência da doença, 34,58% (102) apresentam valores acima da média estadual e ocorrem principalmente no interior do estado definindo incialmente as áreas críticas e potencialmente críticas à difusão da doença (Figura 2).
Figura 2 – Taxa de incidência por município no Paraná
Por este aspecto, a avaliação da difusão espacial da Covid-19 no Paraná, deve incorporar, além do caráter urbano-regional, a difusão da doença relacionada aos setores produtivos, notadamente aqueles considerados como atividades essenciais ou de serviços prioritários como, por exemplo, os frigoríficos (HECK et al., 2020).
A análise indica que os frigoríficos devem ser entendidos como super-spreaders (super disseminadores) (BOULOS E GERAGHTY, 2020; DYAL et al., 2020; NICOLELIS, 2020), ou seja, como centros de difusão do vírus, uma vez, que essas unidades, além de ampliar sobremaneira os agravos à saúde dos/as trabalhadores/as e da saúde coletiva, também organiza-se como elemento de propagação da doença no território. O argumento não é novo, uma vez que, como outras doenças contemporâneas, a Covid-19 atinge mais gravemente a classe trabalhadora.
Desta interpretação é possível observar que o arranjo representado pela distribuição do CI destaca as áreas de notável semelhança entre o número de empregos no setor de frigoríficos de aves e suínos do Paraná. Destaca-se, setores dentro das regiões Oeste, Sudoeste, Noroeste e Norte-Central do Paraná, que contemplam os maiores números de empregos no estado e com concomitância com os municípios cujos CIs estiveram acima da média estadual (Figura 3).
Figura 3 – Relação Covid-19 e empregos em frigoríficos no Paraná
Observa-se também a presença de áreas cuja presença do setor é fraca, mas a incidência da Covid-19 é forte, como em Curitiba e Região Metropolitana, o que demonstra que é preciso compreender que a difusão espacial da doença opera primeiro nas áreas mais urbanizadas e conectadas aos sistemas logísticos de transporte e mobilidade. Porém, no interior do estado, a semelhança entre a incidência espacial da Covid-19 e empregos em municípios com frigoríficos abate de aves e suíno, é o que permite ampliar a análise também para os fatores de sua interiorização.
Essa avaliação indica que os frigoríficos são um dos fatores responsáveis pelo processo de interiorização da doença no Paraná. A semelhança entre o número de casos da Covid-19 e a grande presença de empregos em frigoríficos demonstra que é necessária atenção especial para este setor, cujo processo produtivo reúne condições propícias para o contágio e proliferação do vírus (Figura 4).
No caso dos frigoríficos de abate de aves, a semelhança pode ser observada a partir da área de concentração que indica a abrangência dos setores oeste, norte e sudeste do estado. Já o abate de suínos, contempla uma espacialidade concentrada no setor leste e oeste principalmente.
Figura 4 – Relação entre casos da Covid-19 e concentração de empregos em frigoríficos de aves (a) e suínos (b).
a)
b)
A consideração permite indicar os frigoríficos no conjunto de atividades essenciais que não foram paralisadas e, como as linhas de abate de processamento de carnes estimulam a aglomeração interna à unidade fabril, somada a intensa e cotidiana mobilidade regional (articulação de trabalhadores/as e seus locais de residência no conjunto de municípios imediatos e próximos à unidade sede), podem se configurar como centros de disseminação da Covid-19.
Por este aspecto, é possível considerar definições de áreas potencialmente críticas à difusão e concentração espacial da Covid-19, uma vez que os dois mapas representam realidade que reúne um amplo circuito produtivo que vai desde as granjas de galinhas e porcas avós (matrizes), passando pelas granjas de engorda destes animais), empregando milhares de famílias e trabalhadores(as) envolvidos diretamente neste circuito produtivo, bem como em atividades de suporte como maquinário e implementos agropecuários que se instalam para atender a demanda dos frigoríficos (SORJ, POMPERMAYER e CORADINI, 2008; HECK, 2017b).
Esse argumento é melhor visualizado na Tabela 1, que apresenta os municípios com o maior número de casos confirmados da Covid-19 que podem ser enquadrados em áreas críticas para difusão da doença.
Tabela 1 – Relação entre Covid-19 e os 10 primeiros municípios com frigoríficos.
Município | Casos confirmados* | Óbitos confirmados* | CI | Aves | Suinos |
Cascavel | 930 | 11 | 324,9 | 5920 | 878 |
Maringá | 319 | 11 | 89,3 | 4980 | 0 |
Toledo | 190 | 2 | 159,2 | 0 | 6282 |
Cianorte | 179 | 2 | 255,9 | 2729 | 0 |
Rolândia | 28 | 2 | 48,4 | 4746 | 0 |
Medianeira | 22 | 52,6 | 0 | 5108 | |
Palotina | 19 | 1 | 66,2 | 4931 | 0 |
Cafelândia | 5 | 34,1 | 5291 | 0 | |
Jaguapitã | 5 | 40,9 | 3328 | 0 | |
Matelândia | 2 | 12,4 | 5876 | 0 |
*Notificações observadas até o dia 11 de junho de 2020. Orgs. Autores.
Essa definição pode ser destacada sinteticamente por: 1) a determinação por parte do governo federal que entende os frigoríficos como atividade essencial; 2) a característica específica do setor em ser intensivo em mão de obra o que implica na aglomeração de milhares de trabalhadores/as nas linhas de produção; 3) as condições ambientais controladas (frio e a baixa taxa de renovação do ar) que favorece o contágio e a disseminação do vírus; e, 4) a migração pendular diária na qual os frigoríficos buscam trabalhadores/as em municípios circunvizinhos, o que leva ao surgimento e aumento de casos não apenas na cidade sede do frigorífico, mas principalmente aos municípios imediatos e próximos.
Algumas considerações
O estado do Paraná está na fase de interiorização da COVID-19, por isso, atividades essenciais, como frigoríficos são consideradas como fator de risco à saúde coletiva e dos/as trabalhadores/as, bem como de difusão da doença no território. Existe semelhança entre a concentração de empregos em frigoríficos e casos da Covid-19 no estado, principalmente quando se assume 95% do percentual explicativo da incidência da COVID-19 em municípios com frigoríficos, o que configura as áreas críticas à difusão da doença.
Dos 64 municípios com registro de empregos em frigoríficos de aves e suínos apenas 3 (Santa Isabel do Oeste, Roncador e Cambira) não registraram casos da Covid-19. As características do ambiente e as condições de trabalho em frigoríficos favorecem o ciclo viral, bem como a migração pendular diária de trabalhadores se torna potencial de propagação do vírus para municípios do entorno (áreas potencialmente críticas) e a sede (áreas críticas).
Devido à importância da situação, é fundamental a adoção de uma estratégia de testagem em massa e de forma seriada (recorrente) na força de trabalho das unidades de frigoríficos, a fim de caracterizar e analisar o avanço da epidemia entre os/as trabalhadores/as. Indica-se, seguindo referências da área da saúde, a articulação dos dois tipos de teste o Reverse-Transcriptase Polymerase Chain Reaction (RT-PCR) e imunoglobulinas. Essa informação é fundamental para o planejamento seguro das atividades produtivas, a fim de salvaguardar a saúde dos\as trabalhadores\as e, quando necessário, reforçar os critérios de proteção e distanciamento social para além do que já é obrigatório.
A adoção de medidas de contingenciamento do ritmo de produção e do número de trabalhadores/as nos processos produtivos também é necessária, sem prejuízo salarial e aos seus direitos, bem como é fundamental manter os contratos e garantias com avicultores e suinocultores integrados no período de interdição ou de diminuição dos abates.
Nossa análise indica existir relação entre municípios sede de frigoríficos e de seu entorno com o crescimento quantitativo de casos da Covid-19. Por isso, conclui-se que existem áreas críticas e potencialmente críticas considerando a similaridade e a difusão espacial da doença no âmbito local e regional. Nesse caso, os municípios com frigoríficos podem ser assumidos como centros de propagação da doença (super spriders), devido o papel de conexão com os municípios vizinhos, conforme também indica literatura internacional (DYAL et al., 2020; LECLERC, FULLER e KNIGHT, 2020; MOLTENI, 2020; NICOLELIS, 2020).
Matéria feita por Fernando Mendonça Heck / 30 de julho de 2020 - Fernando Mendonça Heck – IFSP, Tupã-SP - Lindberg Nascimento Júnior – UFSC, Florianópolis-SC
*Texto produzido pelos autores a partir de parecer técnico emitido no mês de junho para o Ministério Público do Trabalho (MPT) do estado do Paraná.
Ref.: http://otim.fct.unesp.br/
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