Postado em 01/06/2021 09:21 - Edição: Marcos Sefrin
Como promover a coexistência (não hierárquica) entre as aves e as pessoas? Precisaremos sacrificar espécies, como já ocorreu, em detrimento de comportamentos, normas e valores culturais?
Coloridas, diversas, inúmeras. Foto: Flávia de Campos Martins
Se você assistiu ao que muitos consideram ser a última grande obra de Alfred Hitchcock, “Os pássaros” (1963), e ficou tenso por semanas esperando ser atacado no meio da rua por uma inofensiva ave, junte-se ao clube. No filme, as aves locais passam a ter comportamentos agressivos e atacar as pessoas. Não, nenhuma das integrantes desta coluna é da época da estreia do filme. Mas como investigadoras das relações com fauna e relações interpessoais por causa da fauna, sim, vemos dimensões humanas das interações com a natureza o tempo todo, em todo o lugar. Livros, filmes e músicas são materiais riquíssimos e títulos com aves, infinitos. Se duvidar, escute com atenção “Assum preto” ou “Asa-branca”, de Luiz Gonzaga.
O filme “Os pássaros” não tem trilha sonora composta por músicas! Quando sabemos que é o canto das aves grande parte de sua atração, não ter trilha sonora é de destacar. A surpresa de ser atacado por aves (“pássaros não saem por aí atacando pessoas”, é uma das falas no filme), a transição da beleza e placidez das aves para uma agressividade espontânea que não poupa nem crianças, tornam este filme aterrador e, como já foi, sujeito a várias interpretações, políticas, místicas e psicanalíticas.
Basta uma breve viagem no mundo das artes para ilustrar como as aves estão presentes não só no mundo natural, às vezes convivendo com o ser humano, mas, sobretudo no imaginário humano. Aves são retratadas desde as pinturas rupestres, como é o caso de emas (Rhea americana) nos sítios arqueológicos da Serra da Capivara (em quantidade são o segundo grupo faunístico mais representado até personagens de Pokémon (inspirados em pombas, corujas, pica-paus e tucanos).
Entre os animais vertebrados, as aves constituem o grupo mais conhecido em todo o mundo e, talvez, o mais amplo em significados culturais. São antigas, surgiram no Período Jurássico, há mais de 100 milhões de anos e hoje conhecemos cerca de 11 mil espécies. Justamente por existirem tantas referências, torna-se um desafio escrever sobre essas relações. As aves traduzem valores filosóficos, religiosos, míticos, financeiros, científicos, artísticos, para nomear alguns (Figura 1). A capacidade de voo, os cantos complexos, as cores intensas e vibrantes, a variedade de comportamentos alimentares (comem de frutos, grãos, insetos, lagartos, cobras, caramujos à carniça) e reprodutivos (de monogâmicas e que cuidam dos filhotes a parasitas de ninhos e poligâmicas), as formas como dançam, cantam, nadam e até “falam”(!) são algumas das características inerentes desse grupo de espécies que as tornam proeminentes.
Figura 1
A mitologia egípcia traz várias aves como animais sagrados, representações divinas e iconográficas. Através das aves associadas a essas representações entende-se parte desse simbolismo religioso, bem como das relações entre as pessoas e as aves. Muitas das aves utilizadas eram aves aquáticas que passavam pelo Egito em sua rota migratória. Às aves eram atribuídos simbolismos de proteção, eternidade, transformação, conexão e até de coletivo/grupo. Ainda no contexto religioso, o Candomblé também recorre às aves como simbolismo do sagrado. As aves também são referidas como metáforas e símbolos em passagens bíblicas do Velho Testamento, inclusive com citações fazendo referência tanto para condições em que se repudiava a caça e captura (por exemplo, quando em fase de reprodução), quanto para espécies consideradas impuras e, portanto, impróprias para o consumo, especialmente as que se alimentavam de animais mortos.
Do etéreo ao mundo físico, as aves constituíram fonte importante de alimentação. Historicamente, por sua abundância e disponibilidade, se tornaram um dos recursos da fauna mais utilizados no mundo. Segundo os dados de um podcast relevante sobre o assunto, “Aves da Colômbia”, em torno de 1.200 espécies de aves são utilizadas para alimentação em todo o mundo. A evidência mais clara da importância das aves para a alimentação é o alto consumo de aves domésticas, principalmente o frango – embora o frango pareça ter sido destituído de sua identidade de “ave” quando desvinculado do comportamento humano de caça e sendo transformado em commodity. Segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal, o consumo de carne de frango no Brasil em 2020 foi de 45 kg/habitante, na frente do consumo de carne suína, de 16 kg/habitante.
Passarinhadas
No sul do Brasil e no interior do estado de São Paulo, famílias de imigrantes italianos tinham como hábito alimentar-se da “passarinhada”. Pombos, jacu, nambu, e sabiás eram refogados ou assados depois de uma prática familiar de caça. Com o tempo, esta prática, que primeiramente era realizada para sobrevivência, passou a ser recreativa, reunindo a família. O podcast Narrativas do Antropoceno traz aspectos interessantes das aves utilizadas na alimentação, principalmente sob uma visão cultural e da legislação. Interessante que ornitólogos, guias turísticos e conservacionistas se apropriaram do verbo “passarinhar”, ressignificando-o. Esse termo, “passarinhar”, deixa de referir-se à retirada de aves da natureza e passa a ser uma alusão à observação e contemplação das aves em vida livre. A adrenalina (e fascínio) do caçador, substituída pela adrenalina (e fascínio) do observador.
O semiárido do nordeste do Brasil traz um cenário especialmente interessante para a investigação das motivações da caça de aves para alimentação. No semiárido baiano (Casa Nova), por exemplo, ao serem questionados sobre as motivações para caçar aves, 25% dos moradores atribuem exclusivamente a necessidade alimentar (fonte proteica) e 55% atribuem motivações culturais sabor e como parte de reuniões sociais.. Esses dados corroboram com o entendimento de que muito dessa prática não está tão somente associada a uma necessidade de um recurso alimentar.
Não podemos deixar de citar que a criação de aves para alimentação traz questões importantes relacionadas à saúde pública. Alguns vírus da gripe aviária, por exemplo, podem ser zoonóticos, ou seja, podem cruzar a barreira da espécie e ‘saltar’ para humanos. Assim, sem a devida vigilância e controle, há o potencial de causarem novas epidemias, em um ciclo que pode envolver também aves silvestres e migratórias – dificultando o controle da doença. Lembramos que isso já aconteceu em 2005 com o vírus Influenza H5N1 e recentemente, alertas nesse sentido foram levantados para o vírus influenza H5N8.
Foto: Flávia de Campos Martins
Em torno de 40% das espécies conhecidas de aves no mundo são relacionadas a alguma utilidade. Por exemplo, os pombais como estruturas da arquitetura vernacular, subsistem em aldeias e vilas do nordeste de Trás-os-Montes, Portugal, como testemunhos do potencial alimentar e de comunicabilidade que os pombos ofereciam às comunidades humanas ali fixadas centenas de anos atrás. Ou a prática da falcoaria por sheiks do presente, que remete a uma atividade da qual se desconhece quando começou. Trechos da Epopeia de Gilgamés parecem sugerir que capturar e treinar falcões para caçar animais, que os humanos não conseguiam usando armadilhas ou flechas, remontam a mais de quatro mil anos atrás, no Iraque. Hoje, alguns sheiks trocaram o uso de aves silvestres por aves criadas em cativeiro, para temporadas de caça e corridas, ao mesmo tempo em que afirma desenvolver um novo modelo de proteção deste grupo. Sim, em muitos casos, os comportamentos naturais das aves podem contribuir com a conservação destas espécies, como é o caso da conservação do Jacu(Penelope.sp.).Após descobrir que os grãos de café ao serem comidos pelo jacu e defecados ganhavam sabor especial e alta qualidade, sua população foi conservada, pois lhe foi atribuído um valor como espécie viva.
As relações humanas com os pombos nos mostram a complexidade cultural em que se estabelecem, com grandes variações espaciais e temporais. Nos centros urbanos as pombas domésticas, Columba livia, espécie exótica no Brasil, se aglomeram nas praças e locais onde há lixo e restos de alimento. Desencadeiam sentimentos extremos nas pessoas, do medo e aversão ao encanto e associação com representações de paz e espiritualidade. Já nas zonas rurais, mais afastadas das cidades, as rolinhas e juritis, espécies de pombas nativas, são caçadas para alimentação. Na internet é possível encontrar ofertas de arribaçã ou avoante (Zenaida auriculata) para comprar, notícias de indivíduos caçados e imagens das pessoas se admirando com os voos da espécie em bandos, nos períodos de migração. No estudo de Casa Nova, Bahia, a arribaçã foi a espécie com maior valor de uso entre as aves citadas e a única citada com três tipos de usos: alimentar, estimação e comércio. É a espécie da música Asa Branca de Luiz Gonzaga, que mencionamos no início. Sem dúvida algumas dessas espécies podem ser consideradas como espécies-chave culturais, espécies importantes no imaginário das pessoas e que caracterizam a identidade cultural de comunidades humanas.
Nesse cenário de tantos contrastes de representações simbólicas e culturais em relação às aves, reflexões sobre a sua conservação são fundamentais. Uma revisão sistemática, conduzida por Benítez-Lopéz e colaboradores (2017), compara as abundâncias de aves em áreas caçadas e não caçadas em regiões tropicais e identifica uma redução média de 58% em um raio de 7 km das áreas de caça. Segundo a Birdlife International (2018) 13% das espécies de aves atualmente têm algum nível de ameaça de extinção. A caça e captura são responsáveis pela ameaça a 35% dessas espécies. Possivelmente o olhar sobre as aves lançado por uma pessoa que vive na cidade é diferente da pessoa que vive no campo, subordinado a variáveis tais como seu conhecimento, proximidade afetiva, psicológica e cognitiva com o mundo rural, áreas naturais e espécies silvestres, para referir apenas alguns. Os valores de ambos os grupos foram construídos distintivamente, podendo para alguns a ave representar sustento/recurso e para outros representar mercadoria/prazer.
Então, como promover a coexistência (não hierárquica) entre as aves e as pessoas? Precisaremos sacrificar espécies, como já ocorreu, em detrimento de comportamentos, normas e valores culturais? Não temos respostas prontas, mas as Dimensões Humanas surgem com o objetivo de promovê-la. Nesse caminho, nenhuma espécie tem mais valor do que outra, o direito à existência é comum a todas. Esse status de coexistência, em que o conflito entre as partes é substituído por benefícios para as partes, é difícil de determinar, uma vez que, do lado humano, exige disposição a aceitar prejuízo econômico, por exemplo, ou disposição a mudar comportamentos seculares. Mas é possível, e é onde reside a beleza deste mundo diverso. A contemplação da natureza e a observação das aves (o birdwatching) em seu ambiente natural são opções mais sustentáveis do que as relações de uso que reduzem as populações de aves. Fábio Olmos traz uma reflexão importante sobre diferentes práticas e implicações de alternativas para aproximar as pessoas da avifauna, através da observação das aves em comedouros e outras formas de alimentação.
Cantos da Amazônia é uma série de vídeos exibindo a diversidade de espécies e comportamentos em ambiente urbano e nos diferentes ecossistemas da Amazônia, sob uma belíssima e cuidadosa produção. É nesse espírito artístico e inspirador que convidamos o leitor a olhar pelas janelas, a tirar o fone de ouvido em algum momento da caminhada, da corrida; a observar; e a dialogar para construirmos novas relações com a avifauna, repleta de espécies coloridas, intrigantes e surpreendentes. Que todas as aves representadas pela figura da Fênix possam ressurgir das cinzas de um passado de ameaça e que novas relações entre as aves e as pessoas iluminem o nosso futuro.
Ref.: https://www.oeco.org.br/
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