Postado em 19/12/2018 10:24 - Edição: Marcos Sefrin
CONCENTRAÇAO DE RENDA
A história demonstra que é possível conter a escalada da desigualdade social. Não se trata de um problema de falta de ferramentas para realizar essa empreitada, mas de vontade política para isso. Parte do problema está no funcionamento de algumas democracias modernas, que blindaram a economia da interferência democrática, impedindo que a vontade da maioria prevaleça sobre o poder econômico
Em resumo: aquele que pede reformas igualitárias de acordo com os tempos e as circunstâncias, como o socialista, baseia-se na história. Aquele que defende a constituição de uma sociedade igualitária, em que todas as diferenças são consideradas irrelevantes no que diz respeito à distribuição das vantagens e das desvantagens, voa pelos céus da utopia.
No livro “Zombie Economics”, John Quiggin discute alguns pressupostos econômicos que, mesmo após o surgimento de amplas evidências que os provem equivocados, insistem em “não desaparecer”. São as ideias zumbi, que, apesar de todas as provas de que elas deveriam estar enterradas, acabam retornando sob uma nova roupagem. Quiggin argumenta que essas teorias econômicas permanecem vivas porque apresentam alguma utilidade, pelo menos para alguém.
Um exemplo atualíssimo de uma ideia zumbi é a hipótese do “Trickle down economics” – a teoria do gotejamento. Resumidamente, os crentes na tese do “gotejamento” afirmam que as políticas públicas que favorecem os ricos irão, em longo prazo, inevitavelmente produzir benefícios para toda a sociedade. Ou seja, a riqueza do “andar de cima” eventualmente gotejaria para o “andar de baixo”, melhorando a vida dos mais pobres. Segundo esse raciocínio, a adoção de um sistema tributário leniente com os ganhos dos mais ricos, por exemplo, ensejaria o crescimento dos investimentos, impactando positivamente no emprego e na renda nacional, trazendo ganhos materiais para toda a população.
O pressuposto largamente aceito pelos economistas liberais de que o enriquecimento dos ricos irá, necessariamente, beneficiar os mais pobres teve um papel preponderante em moldar a institucionalidade do capitalismo contemporâneo e o entendimento – equivocado – que as pessoas têm sobre a economia. De qualquer forma, isso não muda os resultados da economia do gotejamento: enquanto os ricos se tornam cada vez mais ricos, não há uma compensação proporcional que beneficie o restante da população. O resultado é a explosão de desigualdade social.
Fonte: gráfico retirado de: ZUCMAN e SAEZ (2016)
O gráfico acima, retirado de um estudo realizado por Gabriel Zucman e Emmanuel Saez sobre o crescimento da desigualdade nos E.U.A, é emblemático do fenômeno aqui discutido. Se, após a segunda guerra mundial, o 0,1% mais rico se apropriava de 10% da riqueza total, após a década de 1980 é evidente que há uma tendência de concentração da renda: o segmento social mencionado passou a abocanhar mais de 20% da riqueza nos Estados Unidos. Duas questões são importantes: 1) como explicar o crescimento da desigualdade? 2) Será que a população se beneficiou da concentração da renda?
Em tom didático, Ha-Joon Chang procura derrubar essa ideia zumbi, de que a prosperidade para os mais pobres depende do enriquecimento dos mais ricos. Segundo o autor, a “economia do gotejamento” pode assim ser resumida: políticas públicas “pró-ricos” estimulam o crescimento, ao passo que as medidas “pró-pobres” reduzem o crescimento. Em seu contraponto, Chang pondera que entre os anos de 1960 e 1970, durante a “Era de Ouro do Capitalismo”, quando foi registrada uma queda substancial da desigualdade na maioria dos países capitalistas ricos, a economia cresceu mais de 3% ao ano em termos per capita, enquanto que entre 1980 e 2009 – período em que houve um crescimento acentuado da desigualdade – o crescimento atingiu apenas 1,4% ao ano.
Desde 1980, demos aos ricos uma fatia maior da torta por acreditar que eles criariam mais riqueza, tornando a torta maior. Todavia, o que se verificou foi que se reduziu o ritmo de crescimento da torta. Em síntese: não há garantia alguma de que a maior concentração de renda nos estratos superiores resulta em mais investimentos, e tampouco é seguro dizer que os pobres irão se beneficiar do crescimento da desigualdade. Em poucas palavras: o simples fato de tornarmos os ricos mais ricos não faz com que todo mundo fique mais rico.
Fonte: gráfico retirado de ALVAREDO, F; CHANCEL, L; PIKETTY, T; SAEZ, E; ZUCMAN (2018)
O gráfico acima, extraído da pesquisa “World Inequality report”, escancara o processo de concentração de renda nos E.U.A, que tem ocorrido nas últimas décadas. Enquanto que o 1% mais rico, após a década de 1980, passou a se apropriar de uma parcela da renda cada vez maior, o contrário aconteceu com os 50% mais pobres, que perderam espaço na disputa pela renda nacional.
Uma das explicações mais tradicionais sobre o crescimento da desigualdade social nas últimas décadas, que remete ao economista Gary Becker, aponta que o crescimento da desigualdade está relacionado às transformações tecnológicas e às maiores exigências por trabalhadores qualificados, detentores de mais capital humano. Conforme esse raciocínio, o crescimento da desigualdade seria um reflexo da maior importância do capital humano na sociedade contemporânea: trabalhadores com mais conhecimento, habilidades e aptidões específicas passariam a receber salários cada vez maiores, ao passo que os “desqualificados” estariam fadados à perda salarial. A redução da desigualdade social, segundo essa linha teórica, envolveria mais investimentos em capital humano, com o objetivo de aumentar o “estoque” de conhecimento da população. Por uma questão de oferta x demanda, diminuir-se-ia o “prêmio” dos trabalhadores mais qualificados.
Portanto, a explicação convencional mencionada acima, chamada de Skill-Biased Technological Change (SBTC), situa as raízes do crescimento da desigualdade em forças competitivas que atuam no mercado de trabalho. Seriam, conforme os adeptos dessa teoria, as inovações tecnológicas e as exigências por trabalhadores mais qualificados os fatores responsáveis por alargar o fosso da desigualdade de renda e rebaixar o salário dos trabalhadores pouco qualificados. Os índices mais elevados de desigualdade de renda, portanto, seriam reflexos da inovação tecnológica e de seus impactos no mercado de trabalho.
Todavia, há motivos suficientes para manter o ceticismo com relação à explicação convencional supracitada. Não há evidências suficientes para provar que a maior demanda por trabalhadores qualificados é a grande responsável pela explosão da desigualdade social verificada nas últimas décadas. Ao dizer que a concentração da renda é um mero resultado das transformações tecnológicas e de seus desdobramentos no mercado de trabalho, certos economistas sobrestimam os efeitos de um modelo simples de oferta e demanda e desconsideram a dimensão política que caracteriza a formação dos salários numa economia.
David Howell traz uma visão alternativa. O autor salienta que, ao longo das últimas décadas, houve uma mudança na correlação de forças da sociedade: os trabalhadores tiveram seu poder de barganha diminuído, à medida que aqueles melhores posicionados para extrair recursos dos mercados imperfeitos viram a sua influência e o seu poder crescerem. A escalada da desigualdade, diz Howell, está intimamente relacionada ao fortalecimento da ideologia do livre mercado, à desregulamentação da economia, às novas práticas de governança corporativa e ao encolhimento do Estado de bem-estar social.
Robert Wade, por seu turno, ressalta o papel fundamental que a adesão indiscriminada à ideologia neoliberal teve em aprofundar as desigualdades sociais. A perseguição cega às preferências “do mercado” fez com que a balança de poder pendesse a favor dos endinheirados: como resultado, a distribuição de renda passou a acontecer, cada vez mais, em benefício dos ricos. A parte pouco divulgada dessa história, é que o “mercado”, uma abstração vendida como um mecanismo neutro e impessoal, é, na verdade, uma maneira “educada” de se referir aos donos do capital, especialmente do capital financeiro.
O autor de “O preço da desigualdade”, Joseph Stiglitz, afirma que a desigualdade deve refletir a contribuição que cada indivíduo fornece para a sociedade. Contudo, quando a desigualdade deixa de refletir a contribuição individual, mas, sim, a capacidade de apropriação (injusta) de renda ou de benefícios econômicos diversos, tem-se um sinal de que a economia não está funcionando bem. Uma sociedade que possui níveis alarmantes de desigualdade será menos produtiva, menos eficiente e terá menos oportunidades de ascensão social. Em longo prazo, a democracia sofrerá com descrédito e distorções de representação.
Se, por um lado, Stiglitz destaca os imensos obstáculos para se alcançar uma sociedade mais justa, o autor também esclarece que a desigualdade é, essencialmente, um problema político. As forças do mercado são, primeiramente, moldadas pela política, pelas leis e pela forma como as democracias modernas estabelecem um quadro legal para os agentes desenvolverem suas atividades econômicas. À vista disso, o economista argumenta que a solução para a concentração da renda envolve a construção de uma regulação econômica que estabeleça um pacto social compromissado com a redução das desigualdades.
Thomas Piketty, que realizou uma cuidadosa investigação retratando o crescimento da desigualdade de renda e de patrimônio, do século XVIII até os dias atuais, também merece destaque. O seu livro, que analisa o tema por meio de uma lente “convencional”, se afastando de teorias “radicais”, reduzindo assim o seu aspecto “ameaçador”, é uma leitura obrigatória para todos os interessados no assunto Piketty observa que, além do crescimento brutal da desigualdade social que houve nas últimas décadas, os níveis de desigualdade estão chegando nos picos mais altos já verificados. O autor de “O Capital no século XXI” passa uma mensagem clara, e que não deve ser menosprezada: a desigualdade social é um problema urgente.
A tributação progressiva, que cumpriu um papel fundamental na redução das desigualdades durante o século XX, hoje se encontra ameaçada pela guerra fiscal que existe entre os países. Uma solução eficaz para conter o crescimento da desigualdade repousa em: a) na criação de um imposto sobre o patrimônio em âmbito global; b) restabelecer um sistema tributário progressivo sobre a renda e sobre as grandes heranças. Cumpre mencionar uma importante lição do livro de Piketty, que certos economistas preferem ignorar: a progressividade tributária tem uma estreita relação com a dinâmica da desigualdade.
O caso brasileiro é especialmente didático para compreender os efeitos que a regressividade tributária produz sobre a desigualdade social. A partir de dados disponibilizados pela Receita Federal, o estudo realizado por Gobetti e Orairmostra que que o nível de concentração de renda no Brasil é significativamente maior do que se imaginava: os autores calculam que o meio milésimo (0,0005) mais rico se apropria de 8,5% de toda a renda nacional. O ponto interessante, explicam os autores, é que esse resultado está relacionado ao sistema tributário brasileiro, que corrobora para que o Brasil tenha uma das maiores concentrações de renda do mundo. Os autores concluem: “os dados revelam que o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super ricos, combinando baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juro do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física."
Em primeiro lugar, cumpre lembrar que níveis alarmantes de concentração de renda são disfuncionais para o funcionamento da economia. Em segundo lugar, há de se ponderar os custos políticos que a extrema desigualdade social traz para a democracia. Na medida em que a concentração de renda aumenta o poder econômico dos estratos sociais do topo, e esse poder se manifesta por meio de políticas públicas voltadas à criação de uma institucionalidade que favorece o enriquecimento dos (já) abastados, há uma evidente corrosão dos princípios democráticos. O resultado é um quadro legal típico de um Estado plutocrático, onde o poder do Estado é empregado para para apoiar a concentração de renda, num processo que impulsiona o crescimento da desigualdade. Um círculo vicioso nada trivial de ser interrompido.
No panorama hodierno, em que o poder econômico do 1% mais rico influi desproporcionalmente nos processos políticos, haverá uma desigualdade na representação dos interesses da população, o que configura uma distorção na democracia. As “regras do jogo”, que serão definidas conforme as orientações dos poderosos, irão beneficiar e favorecer o “andar de cima.”
David Cameron, que atuou como Primeiro Ministro do Reino Unido, deu um exemplo didático de como o interesse dos ricos é capaz de influenciar a formulação das políticas públicas. Em 2013, Cameron bloqueou os planos para a criação de um imposto sobre mansões (casas cujo valor ultrapassasse de 2 milhões de libras) pelo seguinte motivo: em suas palavras, “nossos doadores nunca concordariam com isso”.
A incógnita reside em saber de onde virá a pressão política para a criação um novo pacto social compromissado com a redução da desigualdade. Uma das possibilidades, diz Stiglitz, repousa na luta social: confiar nos 99%; outra opção estaria no reconhecimento, pelos 1% mais ricos, de que um sistema econômico que opera para o benefício de uma ínfima minoria é, na realidade, prejudicial a todos, inclusive para os ricos. Todavia, desde que Stiglitz escreveu seu livro, “O Preço da Desigualdade”, em 2011, a desigualdade segue crescendo. Não há evidência alguma de que a camada mais rica da população está realmente incomodada com os níveis de concentração de renda.
Logo, é justo dizer que o crescimento da desigualdade não é um mero reflexo das forças de mercado, ou de processos econômicos neutros, inevitáveis e fora de controle da política. Em larga medida, o crescimento da desigualdade é uma consequência direta de políticas públicas que definem os mecanismos de concorrência, que moldam os sistemas tributários, que direcionam a despesa pública e, de maneira geral, estabelecem a institucionalidade que irá regular a economia.
O empresário Nick Hanauer, numa palestra “TED TALKS”, apela ao bom senso de seus colegas plutocratas e pondera que, evidentemente, não há problema algum em haver algum grau de desigualdade na sociedade. O problema surge, entretanto, quando a desigualdade social atinge níveis extraordinários. Seu raciocínio segue: na medida em que esse padrão de concentração de renda continuar, nossas democracias capitalistas se transformação em “sociedades rentistas neofeudais”. Por fim, Hanauer lembra que as sociedades com níveis inaceitáveis de desigualdade são caracterizadas ou por um Estado policialesco, ou por uma população pronta para a rebelião. A mensagem do empresário é clara: se algo não for feito para interromper o ritmo de concentração de renda, cabeças vão rolar: “os forcados estão chegando”.
A história demonstra que é possível conter a escalada da desigualdade social. Não se trata de um problema de falta de ferramentas para realizar essa empreitada, mas de vontade política para isso. Parte do problema está no funcionamento de algumas democracias modernas, que blindaram a economia da interferência democrática, impedindo que a vontade da maioria prevaleça sobre o poder econômico. Lamentavelmente, a outra parte do problema reside na defesa ferrenha que a elite faz de seus privilégios, utilizando de seu poder para influir na elaboração de políticas públicas em detrimento do resto da população.
No passado, a vontade política para conter a desigualdade social se fortaleceu após duas guerras mundiais, a crise de 1929, o nazismo e o fascismo. Esperamos que no século XXI a história se desenrole de maneira diferente.
O pessimismo hoje, seja-me permitida mais esta expressão impolítica, é um dever civil. Um dever civil porque só um pessimismo radical da razão pode despertar com uma sacudidela aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram conta de que o sono da razão gera monstros.
*Tomás Rigoletto Pernías é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituo de Economia da Unicamp
Matéria feita por Tomás Rigoletto Pernías no dia 14 de dezembro de 2018 - Imagem por Dahmer
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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