Postado em 30/04/2019 16:52 - Edição: Marcos Sefrin
DEMOCRACIA
Pois que, na contramão da história republicana e democrática, mais uma vez o governo Bolsonaro mostrou que despreza a participação social. O Decreto n. 9.759 pretende extinguir e estabelecer diretrizes, regras e limitações para colegiados na administração federal, entre eles conselhos, conferências, fóruns e comitês gestores. E o que não for extinto, morrerá à míngua.
A quem não interessa uma gestão participativa na vida pública brasileira? E por que o modelo de participação social está sendo sucateado no Brasil?
Em análise das práticas do Orçamento Participativo (OP) em administrações municipais, no país, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leonardo Avritzer, constatou que, desde o final da década de 1980, quando foram implantadas pelo Partido dos Trabalhadores, as experiências de OP reformularam o fazer político e qualificaram a intervenção da sociedade civil junto ao Estado. Esta reorganização política, em questão, reconfigurou o desenho institucional, a atuação e a representação social dos conselhos, fóruns, conferências públicas e movimentos sociais, acrescentando novos mecanismos de representatividade.
Estudos de Avritzer e Boaventura de Sousa Santos consideraram que fóruns e conferências, conselhos e comitês gestores foram qualificados enquanto instrumentos de políticas públicas, conforme se expandiu, nas últimas décadas, a democracia de alta intensidade. Tratou-se de “democratizar a democracia” para ampliar o cânone democrático, e, por isso, as experiências longevas de Orçamento Participativo nas prefeituras de Porto Alegre e de Belo Horizonte, por exemplo, auxiliaram em um novo pensamento e em uma transformação do exercício de operacionalização da gestão pública.
Propostas de governança colaborativa e transparência pública foram sendo elaboradas como resultados de debates e disputas ideológicas em torno das diferentes concepções de democracia; ou seja, a participação social é, em todo, um processo antagônico e uma prática pedagógica. As disputas de ideias fortalecem e enriquecem o fazer democrático, além de ampliar canais de interlocução do governo e da sociedade civil – que, quando aproximados para discutir as políticas públicas, criam princípios de corresponsabilidade.
O Orçamento Participativo e os conselhos, assim como os observatórios sociais, estimularam o controle social – accountability, a responsividade das instituições públicas e a atuação conjunta da sociedade civil – para propor e solucionar problemas públicos. Contudo, no Brasil, o OP foi batizado como um “modo petista de governar”, e, por isso, recusado e desqualificado pelos governos de direita.
Ora, Carole Pateman, feminista e filósofa, defende que a participação social é um processo contínuo de aprendizagem para o exercício da cidadania, e, na mesma linha, Jocelyne Bourgon, estudiosa do serviço público, afirma ser a governança colaborativa um instrumento ideal para a difusão e a horizontalização das políticas públicas. Ou seja, é preciso que haja um trabalho contíguo junto às instituições e à sociedade civil, e, em parceria, sobretudo, com os conselhos híbridos e os movimentos sociais.
A formação de coletividades estabelece o empowerment e o protagonismo social, e o conhecimento, quando conjunto, possibilita que a sociedade civil e o governo tenham capacidade de resiliência. O que e como fazer, de que forma escolher e como implantar, como responsabilizar e controlar, como monitorar e auditar políticas públicas são processos educativos na participação social.
Governo morto
Pensar a cidade sob a lógica do Orçamento Participativo significou planejá-la de baixo para cima, e inverter o modus operandi das decisões políticas elitizadas. Para democratizar a administração pública, independentemente das idiossincrasias em disputas, a cidade foi compreendida em suas múltiplas dimensões e necessidades.
O sistema político, pautado pela disputa de ideias, na prática, torna-se essencialmente dialógico e pedagógico, ou seja, quem recusa a participação social nega a pluralidade e a própria democracia, vez que a administração dos recursos públicos em áreas como saúde, mobilidade urbana, direitos humanos, habitação, educação, cultura, esporte, meio ambiente, segurança e lazer deve ser qualificada no debate público. Negociações, disputas e divergências são inerentes ao próprio processo, e, ao negar a ausculta da sociedade civil e de suas organizações sociais, o governo torna-se morto.
A população, quando foi chamada, se fez presente em espaços públicos de debate, sendo as assembleias do OP exemplos históricos de mobilização e participação social. Mecanismos e interfaces participativas marcaram a política brasileira e reconfiguraram a democracia participativa e deliberativa em desenvolvimento.
Em questão, destaca-se que os conselhos, as conferências, os fóruns, os comitês gestores não foram inventados pelo Partido dos Trabalhadores, já que existe uma longa e histórica trajetória na criação desses mecanismos públicos. Ocorrente é que os conselhos sempre foram tratados como espaços elitizados destinados a pessoas de notáveis saberes, tendo ocorrido, nos governos petistas, uma transformação desses canais de participação – impulsionados, pois, pela redemocratização e pela agência dos movimentos sociais. Ou seja, espaços representativos, paritários e deliberativos foram intensificados por governos petistas, mas o OP vem em sua construção apartidária, ainda no prenúncio de alçar a esfera federal.
Em linhas gerais, os conselhos públicos atuaram na órbita de inúmeros governos, contudo sem, nem sempre, ser de forma plural e inclusiva. Para os governos autoritários, a participação social nunca foi e nunca será bem-vinda.
Produto exportação
Enquanto o governo brasileiro ignora a Constituição Federal de 1988 e sepulta a democracia e seus mecanismos de participação social, outros países caminham no contrafluxo do retrocesso e do autoritarismo vigente.
Portugal importou do Brasil o Orçamento Participativo, e o transformou em uma política de Estado. O que no Brasil se efetivou somente como política de um partido, como modo petista de se governar, foi implantado em outros países com maior abrangência. Inserido no calendário político do país e organizado e coordenado pelas Câmaras Municipais, os portugueses conclamam, anualmente, a sociedade civil para debater e propor melhorias para as cidades.
O Projeto Lisboa Participa, a exemplo, inclui, além de lisboetas, turistas, imigrantes e refugiados para pensar projetos para a cidade. O único critério exigido é “gostar de Lisboa”, garantem os técnicos da Câmara Municipal, numa sessão de capacitação.
Há onze anos, o OP ocorre em Lisboa. Os participantes possuem a oportunidade cívica de elaborar e ouvir propostas, contrapor e votar o que consideram importante para seu bairro e sua cidade. Projetos, aparentemente simples, como a proposição de um pombal para controlar a reprodução de aves ou um coletor para excrementos de cães domésticos nas calçadas, surgem e são defendidos com o mesmo rigor e afinco como um projeto de restauro para uma edificação histórica, ou mesmo a construção de uma quadra de esportes.
Do ponto de vista orçamentário, a Câmara Municipal de Lisboa separou cerca de 1% (aproximadamente 2,5 milhões de euros) no último ano para as propostas do OP. Muitos projetos estão espalhados pela cidade, como a requalificação de avenidas ou a construção de parques infantis, e os portugueses fazem questão de nominar o que é projeto oriundo de OP.
Ao propor projetos, aprendem como a máquina pública funciona nas questões de dotação, custos e despesas orçamentárias, ao mesmo tempo em que são esclarecidos quanto ao porquê de uma construção de hospital, de uma escola ou de uma ponte sobre o Rio Tejo não serem contemplados nos projetos de OP, por exigirem orçamentos maiores.
Nota-se, assim, que durante muito tempo, investigadores portugueses estudaram o Brasil para implantar e aperfeiçoar a metodologia do OP, ao passo que, atualmente, pesquisadores brasileiros, como a professora Ligia Lüchmann, estudam as experiências lusitanas. Ou seja, como produto de exportação, o OP recebe mais atenção fora do Brasil do que dentro, explicou o professor Osmany Porto de Oliveira. Em artigo, analisou as inúmeras viagens e traduções do OP pelo mundo, incluindo Nova York, Paris, Lima e Maputo como aderentes a ele como um instrumento de política pública. Para mais, o Banco Mundial reconheceu o OP de Porto Alegre como iniciativa fundamental para o exercício da cidadania e modelo de política pública a ser implantada pelas nações.
Mobilização social é fundamental
Não obstante os históricos e outros aspectos substanciais do Orçamento Participativo, é preciso reforçar que, para existir participação, é fundamental que haja mobilização social. E talvez seja esse o grande medo dos governos autoritários. Enquanto em Portugal idosos grafitam a cidade por meio de um projeto aprovado no Orçamento Participativo, no Brasil, governos conservadores apagam e pintam de cinza os muros e a democracia.
Pois que, na contramão da história republicana e democrática, mais uma vez o governo Bolsonaro mostrou que despreza a participação social. O Decreto n. 9.759 pretende extinguir e estabelecer diretrizes, regras e limitações para colegiados na administração federal, entre eles conselhos, conferências, fóruns e comitês gestores. E o que não for extinto, morrerá à míngua.
Válido, portanto, avigorar: quem odeia a participação e o controle social, trabalha contra a democracia.
Giane Maria de Souza: Historiadora, mestre em Educação pela UNICAMP. Doutoranda em História pela UFSC – Linha de Pesquisa Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo. Bolsista UNIEDU/SC. Foi bolsista – Capes no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior como Investigadora Convidada no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). É autora do livro A cidade onde se trabalha – a propagação do autoritarismo estadonovista em Joinville/SC pela Editora Maria do Cais, 2008.
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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