Postado em 05/02/2019 16:51 - Edição: Marcos Sefrin
Quando o presidente João Goulart anunciou que iria colocar em prática as Reformas de Base, com objetivo de reduzir a concentração da renda e da terra no país, milhares de pessoas saíram às ruas para defende-las e aprofundá-las. Contudo, apesar do forte apoio popular às mudanças anunciadas, os setores da sociedade ligados ao pensamento conservador protestaram contra o governo, considerado por eles uma porta de entrada para o comunismo no Brasil. Isso animou os golpistas, que perceberam uma importante disposição de setores das classes médias para sustentar a derrubada do presidente por quaisquer meios.
Brasil no início dos anos 1960
O Brasil do começo dos anos 1960, apesar de grande parte da população viver em situação de extrema pobreza, vivia seu sonho de modernidade. A inauguração de Brasília, obra polêmica do governo Juscelino Kubitschek, era a síntese desse sonho, materializado numa cidade planejada, elegante, de vanguarda, construída no Planalto Central. Boa parte da sociedade brasileira ansiava por essa modernidade, que significava mais indústrias, mais empregos, mais riqueza.
Mas nem todo mundo concordava em relação aos caminhos que o país deveria tomar para conquistá-la. Para os nacionalistas de esquerda e para os reformistas, era preciso ser um país moderno e, ao mesmo tempo, economicamente independente e socialmente justo, equidistante dos blocos capitalista e socialista que protagonizavam a Guerra Fria . Já para os setores conservadores, o mais importante era a modernização econômica, integrada ao capitalismo mundial. A incorporação política e econômica dos mais pobres poderia vir mais tarde.
Durante o governo JK essas duas correntes até se equilibraram, mas ao longo da gestão de João Goulart o dilema político se acirrou. Era preciso decidir: escolhia-se um caminho ou o outro.
Em 1961, o vice-presidente da República, o trabalhista João Goulart, conhecido também por Jango, assumiu a presidência em meio a uma crise política provocada pela renúncia de Jânio Quadros. Para tornar a situação ainda mais crítica, Jango tinha herdado uma grave crise financeira dos governos de JK e de Jânio Quadros, com grande endividamento externo. A partir de 1962, a economia se arrastava a uma taxa de crescimento de 1,5% ao ano, em contraste com a média de 7% da década anterior. Em consequência disso, enfrentava a queda da produção e dos salários. Crescia a frustração entre as massas de trabalhadores, com aumento das reivindicações, infindável sucessão de greves operárias e lutas camponesas.
Neste momento João Goulart, contava com a aprovação popular. Pesquisas feitas pelo Ibope em março de 1964, e mantidas em sigilo até a década de 1990, mostravam o grande apoio a Jango, 45% achavam seu governo ótimo ou bom. Também indicavam que ele era o candidato favorito às eleições que deveriam se realizar em 1965, com 49% das intenções de voto. E, ainda, que 59% apoiavam suas propostas de Reformas de BaseFecharReformas de Base de Jango: As reformas de base eram constituídas por reformas no campo socioeconômico e político, que dependiam de leis e, em alguns casos, de mudança constitucional para se efetivarem. Eram elas: reforma agrária, reforma urbana, reforma universitária, reforma fiscal ou tributária, reforma política (nesse caso, o eixo era o voto dos não alfabetizados)..
Jango enfrentava a resistência da maioria dos parlamentares de um Congresso conservador.
Mesmo assim, conseguiu a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a criação da Eletrobrás e da Universidade de Brasília (UnB).
Em 1961, obrigado pelos setores militares de direita a aceitar o parlamentarismo para poder tomar posse na presidência, João Goulart lutou desde o começo pela volta do presidencialismo.
Em janeiro de 1963, com 90% de votos a favor num plebiscito, recuperou os poderes de chefe de governo.
Fortalecido, Jango acelerou os esforços em favor das Reformas de Base, que eram 16, com destaque para a reforma agrária, reforma da educação, reforma urbana, reforma bancária, reforma tributária controle das atividades das empresas estrangeiras, reforma eleitoral, salário família e direito de greve. Embora acusadas por seus opositores de “comunizantes”, as reformas propostas por Goulart eram todas capitalistas, mantinham-se dentro das instituições democráticas, tinham o sentido de romper entraves, como o monopólio da propriedade da terra, que impediam um amplo desenvolvimento econômico e uma melhor distribuição da riqueza.
As tensões se agravaram com as grandes mobilizações populares pelas reformas de base.
Elas tiveram seu auge no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, quando Jango defendeu as reformas em curso, com grande apoio das pessoas que compareceram em massa.
O comício foi organizado por setores políticos de esquerda que exigiam um maior compromisso do presidente João Goulart com as reformas que ele mesmo propusera. Ao aderir e comparecer ao comício, o presidente sinalizava para as esquerdas que ele deixava de ser moderado e hesitante, como às vezes era acusado. Para os setores conservadores, a presença do presidente no comício era sinal de que tinha optado por um caminho de “subversão da ordem”. Vários oradores se revezaram no palanque e o comício foi encerrado pelo próprio presidente, que prometia as tão esperadas reformas.
Esse ato abalou os setores da sociedade contrários a Jango. Em resposta, no dia 19 de março, ocorreu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo, arquitetada pelos setores conservadores, e convocada por entidades cívicas e religiosas de direita, em seu esforço de luta contra o comunismo. A marcha colocou nas ruas da capital paulista cerca de 400 mil pessoas, uma multidão nunca antes vista, que protestavam contra o governo considerado por elas como a porta de entrada para o comunismo no Brasil. Isso animou os golpistas, que perceberam uma disposição de amplos setores das classes médias em apoiar a deposição de João Goulart.
No dia 25 de março, ocorreu a revolta de marinheiros que reivindicavam representação política. Em 30 de março, Jango fez um discurso pró-reformas, numa assembleia de sargentos. Os marinheiros queriam melhores condições de trabalho e direitos civis, pois nem casar eles podiam sem a autorização dos superiores.
O Golpe civil-militar no Brasil
O Golpe de 1964 foi realizado por uma coligação de forças e interesses, composta pelo grande empresariado brasileiro, por latifundiários – proprietários de grandes parcelas de terras, e por empresas estrangeiras instaladas no país, sobretudo aquelas ligadas ao setor automobilístico. A conspiração contou com a participação de setores das Forças Armadas, aos quais a maioria da oficialidade acabou aderindo, diante da passividade da liderança militar legalista, ou seja, aquela que era contra um golpe de força contra o presidente eleito.
Acenando com o espantalho do comunismo, visto como sinônimo de regimes violentos e totalitários, a Igreja Católica contribuiu para disseminar o medo do governo de Jango entre a população e arrastou multidões às ruas, clamando por liberdade. Manifestações que também serviram de justificativa para o golpe militar contra as liberdades democráticas.
A situação da politica interna no Brasil criava todas as condições para um golpe, mas o encorajamento do governo dos Estados Unidos talvez tenha sido fator decisivo para que ocorresse de fato o golpe. Na preparação da tomada de poder, a diplomacia norte-americana, comandada pelo embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, praticamente coordenou a conspiração entre empresários e militares, dando garantia de apoio material e militar.
Em 31 de março, as tropas golpistas começam a se deslocar de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Na mesma data, teve início a Operação Brother Sam, da Marinha dos EUA, para apoiar o golpe que iria derrubar o governo constitucional. Mas nem foi preciso, pois a situação militar se resolveu internamente, pois não houve resistência organizada aos golpistas.
Esboçou-se alguma resistência no meio sindical e no movimento estudantil, entretanto, essa resistência foi desorganizada e desestimulada pela própria atitude de João Goulart, que por saber da ameaça de intervenção estadunidense no país teria desistido de resistir quando foi do Rio de Janeiro, local estratégico para a resistência, para Brasília e, dali, para o Rio Grande do Sul. Ainda houve alguma discussão entre Jango e Leonel Brizola se era possível resistir a partir do RS, mas o presidente não assumiu esta opção. Como muitos outros, Jango achava que seria um “golpe passageiro”, e dali a alguns anos, novas eleições seriam convocadas. Afinal, fora assim em 1945 e em 1954, por ocasião das intervenções militares para depois Getúlio Vargas.
Desde o início a ditadura militar buscou ter um aparato legal, como forma de se institucionalizar e de se legitimar perante a opinião pública, sobretudo a liberal, que tinha apoiado a destituição de Jango. Nesse sentido, o golpe contou com apoio de setores ancorados no Congresso Nacional e de juristas conservadores. Foi formalizado na madrugada do dia 2 de abril, no Congresso Nacional, mas sem amparo na Constituição, pois o cargo foi declarado vago enquanto o presidente continuava no território nacional e sem ter renunciado nem sofrido impeachment. Somente numa dessas três circunstâncias, além da morte, isso poderia acontecer.
O presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazilli, foi empossado como presidente interino. Os políticos golpistas tentaram assumir o controle do movimento, mas foram surpreendidos: os militares não devolveram o poder aos civis, sinalizaram que tinham chegado para ficar. Imediatamente criaram um Comando Revolucionário formado pelo general Costa e Silva (autonomeado ministro da Guerra), o almirante Rademaker, e o brigadeiro Correia de Melo.
Chamar a deposição de João Goulart de “golpe” ou de “revolução” revelava, e ainda revela, a linha ideológica da pessoa. Para a direita, sobretudo militar, o que estava em curso era uma revolução que iria modernizar economicamente o país, dentro da ordem. Para a esquerda e para os setores democráticos em geral, não havia dúvidas: tratava-se de um golpe de Estado, um movimento de uma elite, apoiada pelo Exército, contra um presidente eleito. A historiografia convencionou chamar o acontecimento de golpe, pelo caráter antirrevolucionário e antirreformista do movimento civil-militar que derrubou Jango.
No dia 9 de abril de 1964, declarando que “a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”, esse comando baixou o primeiro Ato Institucional, que convocou o Congresso a eleger um novo presidente com poderes muito ampliados. No mesmo dia, o Congresso, já amputado em 41 mandatos cassados, submeteu-se ao poder das armas, elegendo o general Humberto Castelo Branco à presidência. Entre os deputados federais cassados nessa ocasião, estavam Leonel Brizola, Rubens Paiva, Plínio Arruda Sampaio e Francisco Julião.
O movimento militar dava, assim, seu primeiro passo. Um movimento que se impôs com a justificativa de deixar o Brasil livre da “ameaça comunista” e da corrupção, e que desde o início procurou se institucionalizar. Dessa forma, pretendia criar uma nova “legalidade”, que evitasse as pressões da sociedade e do sistema político-partidário sobre o Estado, considerado como um espaço de decisão política acima dos interesses sociais, pretensamente técnico e administrativo, comandado pelos militares e pelos civis “tecnocratas”.
Entretanto, o primeiro Ato Institucional já configurava o novo regime como uma ditadura. Explicitamente afastava o princípio da soberania popular, ao declarar que “a revolução vitoriosa como Poder Constituinte se legitima por si mesma”. Dessa forma, concedeu amplos poderes ao Executivo para decretar Estado de sítio e suspender os direitos políticos dos cidadãos por até dez anos; cassar mandatos políticos sem a necessária apreciação judicial; também suspendeu as garantias constitucionais ou legais de estabilidade no cargo, ficando assim o governo livre para demitir, dispensar, reformar ou transferir servidores públicos.
Como consequência imediata, houve uma onda de cassações de mandatos de opositores, de demissão de servidores militares e civis, e numerosas prisões. Nos primeiros 90 dias, milhares de pessoas foram presas, ocorreram as primeiras torturas e assassinatos. Até junho, tinham sido cassados os direitos políticos de 441 pessoas, entre elas os dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, e João Goulart, de seis governadores, 55 congressistas, diplomatas, militares, sindicalistas, intelectuais. Além disso, 2.985 funcionários públicos civis e 2.757 militares foram demitidos ou forçados à aposentadoria nesses dois primeiros meses. Também foi elaborada uma lista de 5 mil “inimigos” do regime. A ditadura já começou implacável!
Ref.: http://memoriasdaditadura.org.br
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