Postado em 11/07/2018 17:52 - Edição: Marcos Sefrin
VOCÊ JÁ LIGOU OS PONTOS?
Pode não ser evidente, mas existe uma conexão direta entre políticas urbanas e habitacionais – responsáveis pela efetivação do direito à cidade e à moradia – e o enfrentamento da questão da segurança pública.
No mês de Junho, três estudos interessantes – e aparentemente desconectados entre si – foram divulgados pela mídia. Para que seja possível alcançar no país novos e melhores patamares de bem estar da população e de qualidade dos centros urbanos, é essencial compreender como, ao contrário da aparência, estão todas as questões levantadas por estas pesquisas profundamente entrelaçadas e possuem um impacto direto sobre nossas condições de vida. A chave de análise para esta compreensão – e mesmo para a transformação dessa realidade – está no Direito à Cidade.
ESTUDO 01 – Pesquisa do Portal R7 sobre qual o perfil desejado pela maioria dos brasileiros para o próximo presidente: homem, com idade entre 50 e 60 anos, branco, com experiência política, formação universitária, apoiado por diversas forças políticas e que não esteja sendo investigado por corrupção, acredite em Deus e tenha origem familiar pobre. Dentre seis prioridades de atuação destacadas a mais escolhida é o combate à corrupção (21%) e a última preocupar-se com os mais pobres e com o desenvolvimento social (11%). Outro destaque importante deste estudo é 92% dos entrevistados afirmaram que o próximo presidente deveria trabalhar para a educação da maioridade penal para 16 anos.
ESTUDO 02 – a segunda pesquisa, realizada pela OCDE, destaca como a desigualdade em nível global vem constantemente crescendo nos últimos 25 anos, tendo em vista que hoje os 10% mais ricos detêm 50% de toda riqueza, enquanto os 40% mais pobres dispõem de apenas 3%. No que toca o Brasil, demonstra uma enorme dificuldade para a melhoria das condições de renda e, consequentemente, de vida dos 10% mais pobres. Estima-se que levaria aproximadamente nove gerações para um descendente de uma família pobre alcançar a renda média dos brasileiros. Pelo acesso precário que possuem a direitos básicos – como serviços de saúde e educação, além de moradia, cultura, lazer, dentre outras dimensões necessárias a uma vida digna e a qual a cidade deveria proporcionar acesso – suas oportunidades são reduzidas. O estudo ressalta, portanto, que a desigualdade social e de renda definem justamente acesso às oportunidades necessárias para ascensão social e uma vida melhor, impactando diretamente o bem-estar da sociedade como um todo.
ESTUDO 03 – A terceira pesquisa aponta para o crescimento da violência no país, a partir da análise, principalmente, das taxas de homicídio. Em 2016 esse índice atingiu pela primeira vez o patamar de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes; o equivalente a 30 vezes a taxa da Europa. Este dado sugere que, somente nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil. Para além desse crescimento, o impacto causado pelo estudo está ligado aos recortes de idade, raça e gênero, e também regionais, demonstrando como a violência tem um alvo muito específico no país.
Dentre os homens jovens (com idade entre 15 e 29 anos), o homicídio respondeu por 50,3% de todos os óbitos registrados em 2016. Se recortada a faixa etária apenas entre 15 a 19 anos, esse percentual sobe para 56,5%. Para efeito de comparação, os homicídios respondem por 33% das mortes na faixa etária entre 30 e 34 anos, por 22,7% na faixa de 35 a 39 anos e 13,9% na faixa de 40 a 44 anos. A violência no Brasil, portanto, é jovem.
Todavia, não se trata de qualquer juventude. Se por um lado a taxa de homicídios de pessoas não negras registrou uma diminuição de 6,8% nos últimos dez anos, a da população negra aumentou 23,1% no mesmo período. No ano de 2016, por exemplo, 71,5% das pessoas assassinadas no país eram negras ou pardas. A violência, portanto, tem cor, mirando na juventude negra.
Por fim, os homicídios não ocorrem indiscriminadamente no território nacional – a situação é mais grave nos estados do Nordeste e Norte. Analisadas comparativamente as taxas de homicídio por 100.000 habitantes, os sete estados brasileiros com as maiores taxas se localizam nestas regiões: Sergipe (64,7), Alagoas (54,2), Rio Grande do Norte (53,4), Pará (50,8), Amapá (48,7), Pernambuco (47,3) e Bahia (46,9).
Mas como essas três pesquisas se entrelaçam? Como ligar os pontos?
Pode não ser evidente, mas existe uma conexão direta entre políticas urbanas e habitacionais – responsáveis pela efetivação do direito à cidade e à moradia – e o enfrentamento da questão da segurança pública. Segundo o próprio Atlas da Violência, “quando as expectativas futuras dos cidadãos se deterioram, quando o medo começa a imperar, deixa-se de confiar nas instituições do Estado, e as pessoas passam a abandonar o espaço público, segregam-se dentro de condomínios e compram armas de fogo. (…) fazendo deteriorar as condições de segurança no presente e recrudescer as taxas de crime no futuro” (IPEA, 2018, p. 03).
Urge, portanto, pensar a política de segurança pública na chave do direito à cidade, ou seja, na construção de uma cidade cujos espaços públicos “promovam interações sociais e participação política, permitam a manifestação de expressões socioculturais, abracem a diversidade e alimentem a coesão social” e fomentem uma economia popular diversa e inclusiva, conforme vem sendo reivindicado internacionalmente por organizações e movimentos que militam no tema[3]. Ao se tornarem acolhedores, inclusivos e receptivos às diferentes formas de manifestações, os espaços públicos tornam-se novamente atraentes à população em geral e voltam a ser ocupados.
Mas para que isso aconteça não é necessário antes diminuir a criminalidade ou aumentar o policiamento? Não, a proposta é justamente oposta: a retomada do espaço público por atividades e expressões políticas, artísticas e socioculturais incide na diminuição do espaço “apto” para que esse tipo de conduta ocorra. Existe uma variedade de coletivos, organizações e grupos políticos, artísticos e culturais que, em suas cidades, reivindicam mais e melhores espaços para sua atuação, cabendo então ao poder público tornar aquele espaço receptivo à sua ocupação. Isso pressupõe equipamentos e ambientes cuidados e com boa manutenção, pensados para diferentes tipos de atividades e para as necessidades dos diferentes grupos sociais (mulheres, LGBTs, crianças, idosos, etc), sem repressão por parte das forças policiais, dentre outros tantos fatores que devem ser pensados a partir de uma lógica de política urbana voltada à efetivação do pleno exercício do direito à cidade por parte da população.
Uma segunda dimensão que conecta o enfrentamento à violência e a efetivação do direito à cidade está nas condições de vida cotidiana e nas oportunidades de desenvolvimento pessoal oferecidas pelas cidades brasileiras aos seus habitantes. Como o estudo realizado pelo IPEA aponta, políticas públicas que demonstraram algum impacto real sobre a diminuição da violência possuem em comum o fato de incluírem “programas e ações preventivas no campo social, focalizadas em bairros e localidades com populações mais vulneráveis socioeconomicamente e onde se encontram as maiores incidências de crimes violentos”. Seria necessário, portanto, políticas que promovam um ambiente sadio e equilibrado para o desenvolvimento pleno de crianças e jovens.
Trata-se, primeiramente, de prover uma moradia digna para eles e suas famílias, com boas condições de habitabilidade, localizada numa área ambientalmente equilibrada e conectada com todos os serviços e infraestrutura básica. Mas vai bem além disso, pois requer também que as cidades propiciem a eles o acesso a diversas outras oportunidades para seu completo desenvolvimento enquanto cidadão: educação de qualidade, trabalho e geração de renda, cultura, lazer, esporte etc. Mas qual são de fato as condições vividas pela população pobre do país hoje?
O déficit habitacional (que dimensiona a carência em relação ao total de domicílios do país ou de uma região) auxilia, ainda que de maneira incompleta, a entender a magnitude da situação. No último estudo publicado pela Fundação João Pinheiro (2018, o déficit relativo chegou a 9,3% em 2015, sendo que era de 9,0% em 2014. A disparidade regional nos dados de violência apresentados pelo Atlas e mencionados acima também pode ser encontrada no déficit habitacional relativo das regiões, sendo mais expressivos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e menores nas regiões Sul e Sudeste.
Agrava a situação a redução significativa observada nos investimentos e financiamentos federais voltados às diferentes políticas urbanas. Nos últimos anos, no Governo Dilma ainda, antes mesmo do golpe parlamentar e de todos os cortes de recursos destinados a programas sociais, houve uma significativa redução em especial dos investimentos em urbanização de favelas, por exemplo. Atualmente, estima-se que 11,4 milhões de brasileiros vivam em favelas (aproximadamente 6% da população), de acordo com Censo de 2010, valor este sub estimado, tendo em vista diversas dificuldades existentes nessa quantificação. Dentre estes, enquanto 51% do total de brasileiros possui até 30 anos de idade, entre os moradores de favelas essa proporção é de 58%. Esses moradores também são majoritariamente pretos ou pardos (68%), enquanto no país como um todo essa porcentagem era de 51%. As favelas brasileiras são mais negras e jovens do que a média brasileira.
Enquanto isso, desde o governo Dilma, a diretriz era de abortar o PAC Urbanização de Assentamentos Precários, iniciado no Governo Lula e o primeiro programa federal a efetivamente destinar recursos em grande escala para a melhoria de favelas brasileiras. Em que pesem diversas críticas aos processos instaurados no bojo do Programa e aos seus resultados, tratava-se de devidamente priorizar uma significativa parcela do investimento federal em territórios historicamente relegados, precários e apartados do restante da cidade. Tratava-se, justamente, de possibilitar de alguma forma – ainda que incompleta e mais estritamente vinculada a intervenções físicas e de equipamentos sociais – de promover uma progressão em direção à efetivação do direito à cidade dos moradores de favelas, em sua maioria jovens e negros.
Este tipo de intervenção é especialmente necessária em países como o Brasil, no qual há inúmeras famílias que vivem abaixo da linha de pobreza ou não possuem condições de viverem dignamente com sua renda. Em função da precariedade (ou até mesmo inexistência) em alguns períodos de políticas sociais que garantam a efetivação de direitos básicos – como acesso à moradia adequada, educação e saúde de qualidade, segurança alimentar e até mesmo uma renda mínima – esta população é forçada a viver nas condições possíveis de serem adquiridas com sua própria renda, por menor que seja e por pior que sejam as condições acessíveis. Suas condições de acesso à cidade e as oportunidades de desenvolvimento que essa deveria oferecer estão limitadas e, consequentemente, a efetivação de seu direito à cidade.
Como o estudo da OCDE aponta, essa situação cria um círculo de estagnação social muito difícil de ser quebrado pelos jovens mais pobres do país, que levariam mais de 9 gerações para conquistar apenas a renda média do brasileiro. Uma das consequências apontadas pela organização é precisamente a percepção destes jovens de que sua oportunidade de ascensão está condicionada a fatores fora de seu controle, instilando sentimento de exclusão e desesperança e aumentando a probabilidade de conflitos sociais. Em outras palavras, a violação do direito à cidade destes jovens está diretamente impactando sua perspectiva de vida e, com isso, alimentando a “máquina de fazer criminosos” apontada pelo Atlas da Violência (IPEA, 2018).
Para que se promova uma política de segurança efetiva e conectada com políticas de inclusão e de efetivação do direito à cidade de modo a enfrentar a tal “máquina”, os especialistas do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam uma condição básica a ser observada: o comprometimento político de prefeitos, governadores e presidente com a transformação da vida da população e desta realidade. Como chefes do Poder Executivo nas diferentes esferas, o seu envolvimento como indutores de processos de ampla mobilização social e de ações intersetoriais é essencial.
Mas, diante da pesquisa do perfil e expectativas em relação ao próximo presidente publicada pelo R7, será que é possível esperar esse comprometimento? Se apenas construirmos uma galeria mental de imagens dos presidentes diretamente eleitos no país desde a redemocratização – Collor, FHC, Lula e Dilma – e ainda os vice-presidentes que a história impôs – Itamar Franco e Temer –, somos imediatamente compelidos a pensar: existe uma grande diferença entre o perfil abstrato e aquele efetivamente eleito? Diante de toda a crise política instalada no país nos últimos anos, em que exatamente estamos buscando inovar? Ou será que, como prova de nossa precária educação política, estamos tentando obter resultados diferentes reproduzindo o mesmo comportamento?
A caracterização da nossa população, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2015[5]) realizada pelo IBGE, aponta que temos 53,9% da população composta por negros ou pardos, 51% por mulheres e 23,6% da população possui entre 15 e 29 anos. Qual a representatividade que o perfil apontado pela pesquisa possui diante desta caracterização? Que expectativa a população jovem e negra brasileira (principal vítima da violência) pode ter de ver seus interesses representados pelo chefe do poder executivo federal ou das outras esferas?
Para além da questão da representatividade do perfil esperado diante da população brasileira, seria interessante especularmos: se fosse realizada a pergunta “Você considera que todos os políticos ou a maioria deles é corrupta?”, qual seria o resultado? Numa especulação rasa, seria bem provável acreditar que a média do SIM seria bem alta, com a maioria apresentando uma descrença na classe política. No entanto, o perfil ideal para o futuro presidente brasileiro passa por possuir experiência política e o apoio de diversas forças políticas. Será que existe uma contradição em nossas esperanças?
Além disso, a pesquisa ainda mostra como exigimos, em termos da prioridade esperada dos candidatos, pouco compromisso com a efetivação do direito à cidade da juventude negra brasileira. Realizamos as mesmas apostas de sempre, mas esperando resultados diferentes para nossa realidade urbana.
As nossas escolhas políticas, infelizmente, possuem um impacto direto na manutenção de todo um sistema desigual, concentrador, racista e violento lastreado na dominação através do espaço. Ao eleger de maneira esquizofrênica candidatos descomprometidos com a transformação social, continuamos negando à maioria da população a efetivação do direito à cidade e a condenamos a permanecer presa neste ciclo, sem oportunidades de melhoria de suas condições de vida.
Embora a corrupção seja realmente uma questão para a política brasileira, muito das violações e da não efetivação do direito à cidade acontece e é decidido dentro dos parâmetros de legalidade. O problema vai muito além da corrupção da classe política, pois acreditamos que a cidade é um negócio e precisa ser gerida para se autofinanciar, quando na verdade ela é um bem comum e deve ser cuidada para nos permitir viver dignamente. Não podemos mais roubar a cidade de nós mesmos.
Matéria feitapor *Rodrigo Faria G. Iacovini é Coordenador Executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e Doutorando da FAUUSP - Imagem por Divulgação | Era o Hotel Cambridge
Ref.: https://diplomatique.org.br
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