Postado em 19/02/2019 19:16 - Edição: Marcos Sefrin
O maior efeito negativo da autodepreciação coletiva reside em contribuir para a impunidade dos responsáveis diretos e indiretos pela tragédia
A tragédia de Brumadinho vem provocando ataques raivosos contra um inimigo de muitos nomes: “o Brasil”, “este país”, “aqui”, “nós” (os “brasileiros”), etc. Trata-se de vício antigo e complexo, mas que, no triste episódio da mineradora, soa particularmente inaceitável.
Primeiro porque, a rigor, o raciocínio é falso. Mais da metade das ações da Vale pertence a investidores estrangeiros, com importante participação da multinacional japonesa Mitsui & Co. Foi uma consultora alemã, a TÜV Süd, que certificou a segurança da barragem rompida. As atividades da mineradora são financiadas por governos de todo o planeta.
A deturpação sugere exclusividades falaciosas. Uma das donas da Samarco, responsável pelo desastre de Mariana, é a anglo-australiana BHP Billiton. Em 2016, a Arcelor Mittal, de Luxemburgo, foi multada por emissões de poluentes em Vitória. A norueguesa Hydro Alunorte sofreu denúncia na ONU pela poluição dos rios e igarapés de Barcarena (PA). Brasileiros não participaram dos vazamentos de combustível da Exxon, em 1989, e da British Petroleum, em 2010, nem dos rompimentos de barragens da italiana Prealpi Mineraria, em 1985, e da sul-coreana SK Engineering & Construction, ano passado.
A mesma falácia deturpa a origem da “nossa” corrupção. A Alstom, cuja diretoria subornou membros do governo tucano de São Paulo, é francesa. Os desvios do cartel chegam a 300 milhões de reais, fora superfaturamentos. São estrangeiros os laboratórios farmacêuticos cujas patentes causam prejuízos de 100 milhões de dólares por ano ao sistema público de Saúde.
Poderíamos alongar a lista com evidências do poder persuasivo de corporações internacionais sobre autoridades brasileiras nas áreas do entretenimento, da telefonia, da TV a cabo, dos eletrônicos, etc. Quase todos os lobbies envolvem atividades ilegais ou eticamente discutíveis, muitas delas proibidas nos países em que essas companhias mantêm seus escritórios centrais.
As fortunas destinadas a corromper brasileiros precisam sair de caixas controlados pelos altos círculos administrativos das multinacionais. Também as práticas temerárias e negligentes das filiais, quando incluem grandes riscos, dependem da conivência ou ao menos da omissão de suas diretorias estrangeiras, além das prestadoras de serviços de consultoria e certificações.
Por fim, cabe realçar a incoerência esperta da mania generalizante. Quem dissemina culpas por Brumadinho não ousa disseminar também o fascismo que elegeu Bolsonaro. As pechas de patriota e ufanista, que servem para desqualificar os críticos da simplificação tola do desastre, alimentam o orgulho dos simplificadores no front ideológico. Crimes de estatais são do governo, mas os da iniciativa privada caem na conta do “povo”.
O maior efeito negativo da autodepreciação coletiva reside em contribuir para a impunidade dos responsáveis diretos e indiretos pela tragédia: funcionários e executivos, deputados estaduais e federais, membros de órgãos fiscalizadores, magistrados de vários níveis. Todos têm nomes e sobrenomes, obrigações funcionais, atitudes registradas em atas e memorandos.
O desabamento foi causado por essas pessoas, não por entidades difusas como “a Vale”, “a Natureza”, “o Brasil”, “o capitalismo”. Se procuram uma especificidade brasileira, os analistas podem começar em seu próprio receio de contrariar poderosos de qualquer procedência. Nada mais tipicamente verde-amarelo do que pulverizar indignações para que elas não atrapalhem os negócios da “gente de bem”.
Matéria feita por Guilherme Scalzilli
Ref.: https://jornalggn.com.br/
Ocorreu um erro de reconhecimento de sua tela. Atualize a página.