Postado em 05/12/2018 12:03 - Edição: Marcos Sefrin
FERNANDA MONTENEGRO
Ícone artístico do Brasil, atriz afirma que falta sensibilidade a governantes: “Se está abandonado neste setor, por que os outros não estariam?”
Fernanda Montenegro é lacônica sobre o ofício que escolheu: “uma profissão arretada”. O teatro, que no Brasil vive em permanente estado de emergência, só admite aqueles que, como ela, são devotos do palco, sem moderação ou desconfiança. “Desista. Se morrer, volta. Se não morrer, não volta”, disse a uma amiga relembrando o conselho que havia dado a jovens atores minutos antes da entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil começar.
Completando 89 anos neste mês (16/10), Fernanda Montenegro viveu os últimos oito anos em um diálogo entre passado e presente, buscando em fotos e cartas resquícios do que foram os 75 anos de vida pública dedicada às artes, especialmente ao teatro, ao cinema e à televisão. São registros físicos que se complementam nas lembranças de uma memória intacta, capaz de recordar fatos e afetos: “Eu sou a minha memória”, confessaria no decorrer da conversa.
Fernanda é a sua memória, mas é também um punhado de gente que escreveu com ela capítulos fundamentais da nossa cultura. “A arte é um congraçamento. No caso do teatro, você tem de estar diante do outro. É uma comunhão humana na zona da pele”, reflexiona. Alguns desses fragmentos estão catalogados no livro Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico, lançado este ano pela editora Sesc.
Na obra, a atriz expõe o que fez, mas também aquilo que não quis fazer, como aceitar uma das ofertas que recebeu para exercer um cargo público. A explicação é modesta e tem a ver com os termos que iniciam este texto: é no teatro – na arte – que ela diz o que precisa. Isso não a impede, no entanto, de criticar o pouco apreço de nossos governantes pela cultura. “Sem cultura você tem a fronteira, o país, mas não tem uma nação. A grossura de Brasília é como uma muralha difícil de ser sensibilizada”, pondera.
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Fernanda Montenegro ao Le Monde Diplomatique Brasil analisando aspectos de vida e morte, culturais e políticos, em um hotel no centro de São Paulo.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Como foi o processo de concepção do livro?
FERNANDA MONTENEGRO – Esse livro foi pensado há cerca de oito anos, e há quatro ele está sendo feito de fato. Começamos a buscar coisas nas gavetas, nos álbuns, nos amigos, e de repente eram 75 anos de vida pública. Ninguém faz uma vida pública sozinho, não existe essa possibilidade. Ainda mais em teatro, onde você não vive sem o outro. Tem uma infinidade de gente, a minha própria família, com documentos, cartas, memórias especiais de vida ou morte. E tem o interesse e generosidade do professor Danilo Miranda, que, se não tivesse se interessado, o livro estaria em um buraco qualquer.
Esse livro te fez sentir saudade do quê?
Você começa um livro como esse achando que logo vai terminar, mas depois vai descobrindo pedacinhos, épocas que puxam outras épocas. Quis o destino que eu dobrasse uma esquina e fosse bater em outro lugar, onde a coisa se abre de outra maneira. Quando reflito nos acasos, nas esquinas pelas quais eu dobrei, penso que deu certo, em função de um trabalho prazeroso no campo da realização e da busca artística. Uma profissão como essa não tem ponto final. Um livro, um quadro, uma sinfonia, você pontua. No teatro, não é possível.
Nessa de dobrar esquinas, em algum momento na feitura do livro você se questionou sobre outro caminho possível?
Teve uma hora, por exemplo, que Fernando [Torres] e eu, já casados, pensamos em sair dessa vida. Estava tudo muito complicado, éramos contratados e tínhamos contatos com a rádio do Ministério da Educação e Cultura. Poderíamos tentar algo na BBC, em Londres, na Rádio Difusão Francesa. Conversamos com duas pessoas: minha mãe, que disse para não sairmos do teatro de maneira nenhuma, e com Madame Morineau, extraordinária atriz francesa, que também nos aconselhou a permanecer onde estávamos, fazendo teatro dentro das nossas possibilidades. Fernando e eu não resistimos muito, porque era o que queríamos ouvir. De repente, fomos convidados para a companhia Maria Della Costa e ficamos cinco anos em São Paulo. A gente não sabe do futuro. Nós sonhamos chegar a algum lugar.
Tem uma fala no livro que diz que “cultura no Brasil é sobremesa”. Seríamos diferentes se ela fosse o prato principal?
O problema de quem acha que é sobremesa é que quem faz esse tipo de atividade o tem como prato principal. Há um embate pelos anos afora. Lembro que quando estava grávida da Fernanda [Torres, atriz], o governo do Rio ia mudar, e o candidato que ia substituir o governador chamou a classe artística. Fomos lá, e ele começou o encontro dizendo que tinha prioridades: “Saúde, educação, saneamento…”. Eu pedi licença: “Vou embora. O senhor nos chamou para ter uma conversa sobre cultura. Se cultura não é nem a quinta prioridade, quando for a minha hora o senhor me chama”. É impressionante como os ministérios são estanques. É como se cada um deles tivesse uma realidade e fosse de outro país, que não têm coisas em comum, quando na verdade eles formam um conjunto na administração. Não tem ministério melhor ou pior, mais nobre ou menos nobre. Eu sempre digo que, no momento de necessidade de discussão dentro do país, os ministérios que se reúnem não têm nada a ver com os ministérios que estão lá pelas bordas, a não ser pela necessidade de uma contrapartida, um voto no Congresso ou qualquer coisa do tipo.
No livro História do teatro brasileiro, João Roberto Faria diz que um dos problemas do teatro brasileiro é que, além do pouco investimento, atores e companhias estão preocupados apenas com seu espetáculo. Você concorda?
Nós estamos, há alguns anos, sobrevivendo com produções. A partir do momento em que a capital saiu do Rio de Janeiro e foi para Brasília, começamos a ver o início disso. O processo era o seguinte: você contratava um grupo de teatro, com tempo estipulado, geralmente de quatro ou cinco meses. Existe uma resistência histórica, que é o Teatro Oficina, com o Zé Celso, mas dificilmente você consegue manter esses grupos atualmente. Especificamente o teatro no Brasil não está tendo plateia suficiente que possa sustentar minimamente as pessoas que fazem parte do espetáculo.
Essa realidade tem a ver com o que você diz sobre o teatro brasileiro ser uma teimosia realizada em estado de emergência? O que é esse estado de emergência?
É de emergência porque é por onde se pode sair do buraco e esperar tempos melhores. Talvez seja por aqui, mesmo que não seja para ficar aqui, só conseguir chegar adiante. Houve um tempo em que podíamos fazer planos de dois, três anos. Éramos contratados por um ano, havia planejamento em cidades, por exemplo. Isso não existe mais. Não é tanto a emergência da opção artística sobre uma estética teatral ou um texto. É sobre respirar um pouco até chegar a um lugar melhor.
Você sempre recusou cargos públicos dizendo que é no teatro onde se deve dizer as coisas. Como é o processo de incorporar um personagem nesse estágio da vida?
A arte é um congraçamento. No caso do teatro, você tem de estar diante do outro. Se grava o teatro, não é mais teatro. Televisão é televisão, cinema é cinema. No palco, não. Se você não estiver ali com outra pessoa, o fenômeno não se faz. A cultura necessita do outro. É impressionante como não levam isso em consideração na administração dos governos brasileiros. Há outra zona de sensibilização irmanada, existencial, que você pode racionalizar se quiser, mas que não vem pela lógica habitual. Falamos muito do teatro porque talvez ele seja o menos prestigiado das artes no nosso país, mas isso é como a música popular, a literatura, a dança, a pintura. É uma comunhão humana na zona da pele. É uma pena que o Brasil não viva isso. Se está abandonado neste setor, por que os outros não estariam? Porque, por incrível que pareça, essa sensibilização de pele que determina em você a honestidade de atender o todo te dá uma nação. Sem essa cultura você tem a fronteira, o país, mas não tem uma nação. A grossura de Brasília é como uma muralha difícil de ser sensibilizada. Eles estão fechados em si mesmos.
No livro há uma passagem em que você cita Glauber Rocha e Oswald de Andrade como influências pessoais. Eles dois, com seus trabalhos, balizaram nossa cultura na década de 1960, ao lado da Tropicália, da poesia concreta, das artes plásticas de Hélio Oiticica e outros. Estivemos próximos de construir uma nação culturalmente nesse período e fomos sabotados pela ditadura militar?
O Brasil tem etapas. Venho dos anos 1930, que não tinha absolutamente nada. Getúlio criou o Ministério da Educação e Cultura. Era um ditador, em um período radicalizado pelo nazismo e pelo fascismo, mas aquilo foi um despertar de consciência. Esse período que deu na Tropicália também foi um momento difícil e de reação aos militares. Talvez porque tivéssemos um inimigo claro, fardado e com face, a contestação tinha um monstro único. O problema de hoje é que está tudo pulverizado. Talvez seja uma etapa mais difícil para vencermos. Outro fator é que entramos em outra era da ciência e da tecnologia, com todos os seus botões. Eu não presto muita atenção, mas há uma linguagem, uma contestação violenta espraiada, que não tem face. Eu sei que a modalidade de fazer teatro, que veio de João Caetano há quase duzentos anos, acabou. As plateias têm outros interesses. Somos pequenas comunidades que se frequentam por indicações. Estamos parecendo Paulo de Tarso quando saiu do Oriente Médio para fundar o Cristianismo: apenas catacumbas.
Ainda sobre o teatro e sua atuação, como os personagens estão na sua vida? Alguma marca da história fica ou encerrado o espetáculo acaba-se o vínculo?
Não. Há certos textos que marcam, você aprende. A dramaturgia de bom calibre faz levantar um contexto de discussão. Por que Iago trai Otelo? Por que Otelo se deixa convencer por Iago e mata seu amor? [Otelo, o mouro de Veneza, de William Shakespeare]. Na vida real, Ricardo III matou a família inteira para chegar ao poder. Por quê? Em [Anton] Tchekhov, que já está numa conceituação burguesa, você se vê ali, gente da sua família. Para o ator é mais do que ler um grande romance, porque ele precisa entender o texto. Você precisa deglutir as palavras e toda noite enfrentar a obra. É impossível simplesmente chutar isso quando a brincadeira acaba. Sou contaminada pela dramaturgia que fiz na minha vida. Não estaria aqui conversando com você, conceituando primariamente sobre questões culturais, se não fossem os 75 anos de carreira fazendo outras pessoas, com outros andamentos, origens, classes sociais. É meio louco, mas é um privilégio.
Machado de Assis tem um conto chamado “Espelho”, em que o personagem só se reconhece quando está vestido com a roupa do trabalho. O ator sofre desse mal?
Laurence Olivier, grande ator inglês, dizia que o hábito faz o monge. Às vezes você precisa colocar a roupa do personagem na vida também. Todos nós estamos aqui vestidos de certa maneira como manda a moda de hoje. Se fosse há um século, estaríamos diferentes. Sempre há uma indumentária. A indumentária revela e disfarça.
Há uma passagem no livro que fala sobre o ator ser um viajante das almas…
Isso quem fala é Albert Camus, em um texto extraordinário sobre o existencialismo. O ator é um viajante das almas porque em duas horas ele vive a trajetória de uma vida. Você faz as coisas em casa, mas, às 21 horas de todos os dias, não importa o que aconteça, larga tudo e vai para o teatro. É uma autoconvocação, uma devoção estranha, e que não é para santo nenhum. É a potência do fazer, sem missão celestial. Aliás, o indivíduo só pode se realizar naquilo que corresponde à sua vocação. Se ele está em um trabalho que não lhe é essencial, ele vai fazer direito, mas há uma distorção. Se você está onde quer estar, há um ganho, uma assinatura.
Em Central do Brasil, que está completando vinte anos, uma das últimas cenas mostra Dora dizendo a Josué [Vinícius de Oliveira] para olhar uma foto e não esquecê-la. Qual é o peso da memória na sua vida?
Quando se tem uma doença degenerativa, não há presente e você não conecta a vida com a realidade. Não reconhece os filhos nem a si mesmo. Eu sou a minha memória. O grande drama de quem vive muito, embora seja uma alegria viver, é que não há mais com quem memorizar. Por isso acho que velho conta tanto a mesma história para todo mundo. Aquela pessoa com quem ele poderia conversar sobre aquela memória já não está mais ali. Falei com a Nathalia Timberg recentemente, uma das maiores atrizes deste país, e disse: “Nathalia, estou chegando à conclusão de que você é minha única memória, porque todos já se foram”. Trabalhamos sessenta anos juntas. Também acho que, se a gente vai para outro mundo, seja qual buraco for, se não levarmos a memória, será uma bolha! Não se lembrar de nada? Tem que levar tudo para o além!
O que você quer do futuro? Quanto tempo mais?
Há um ano e pouco passei a fazer a oração de João XXIII: “Se você dorme e acorda, agradeça que você acordou. Se você vai dormir à noite, agradeça por ter atravessado o dia”. Achei ótimo. Sem morbidez, mas não sei como será. A previsão… 91, 92 anos. Os 90 estão aí.
Como você tem visto as lutas feministas na atualidade?
Desde que me entendo por gente, o feminismo está lutando por propostas e em batalhas novas. Isso tudo que está acontecendo hoje é mais uma face de uma luta que vem de muito tempo. São ganhos em etapas. Logo de início parece tudo um absurdo, mas daqui a pouco se consegue uma parte, depois outra, e vamos devagar. Só não acho que precisamos misturar virilidade com machismo. Machismo é crime. A virilidade é fundamental.
Você concorda com Caetano Veloso quando ele te define como “civilizada e civilizadora”?
Acho que ele foi generoso, amoroso, mas não sou civilizadora. Sou uma mulher que trabalha, que ama o Brasil, com uma profissão que considero muito bonita. Amo Caetano, não há outro como ele. Deveriam existir muitos Caetanos. Agradeço a gentileza, mas é demais.
*Guilherme Henrique é jornalista.
Matéria feita por Guilherme Henrique dia 01 de outubro de 2018 - Imagem por Henrique Gandolfo
Ref.: https://diplomatique.org.br/
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