Postado em 20/09/2019 10:59 - Edição: Marcos Sefrin
O governo brasileiro solicitou ao Vaticano para acompanhar a assembleia por meio de um representante, pedido que foi negado
Só a Divina Providência poderia prever que um encontro internacional sobre a Amazônia, convocado há dois anos, coincidiria com o atual momento da região, alvo de políticas destrutivas do governo Jair Bolsonaro e após virar notícia global em razão dos incêndios descontrolados e do avanço recorde do desmatamento.
Em Roma, a explicação que se ouve dentro dos muros da Cidade do Vaticano é bem mundana: trata-se de um exemplo da sagacidade política do papa Francisco, que, responsável por pautar o evento no final de 2017, desde o início de seu pontificado, há seis anos, elencou a defesa do meio ambiente como ponto central de sua agenda.
No próximo mês, durante três semanas, mais de 250 integrantes da Igreja Católica, além de indígenas, ribeirinhos e cientistas de nove países que fazem parte da floresta, se reunirão no Vaticano para o Sínodo da Amazônia, evento que consolidará a liderança global do argentino Jorge Mario Bergoglio como porta-voz da causa ecológica.
O objetivo não é somente discutir novas formas de evangelização na região, que tem cada vez menos influência católica, mas principalmente debater propostas e estratégias para a preservação de sua biodiversidade, das comunidades tradicionais e como desenvolver um modelo econômico sustentável.
Visto pelo governo Bolsonaro como uma ameaça à soberania nacional, o evento será outro potente fórum a chamar atenção da comunidade internacional para a prejudicial política em curso na Amazônia, além de provocar descontentamento na ala conservadora do Vaticano, que tachou o sínodo de “herético” por propor a discussão de temas revolucionários para o catolicismo, como a ordenação de leigos para suprir a falta de padres nas regiões isoladas.
O sínodo é uma espécie de assembleia realizada em média a cada três anos, que muitos em Roma chamam de “Parlamento dos Bispos”. Ele foi instituído após o Concílio Vaticano II, um longo debate que, no início dos anos 1960, modernizou a estrutura da Igreja em diversas frentes. A atual edição, dedicada à Amazônia, se encaixa na categoria de sínodo especial, como já ocorreu antes em discussões específicas sobre continentes como Europa e África. A novidade, agora, é o evento ser dedicado a uma região geográfica.
Como observou recentemente o jornal L’Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, a Igreja Católica não tem competência para formular e promover novos modelos de desenvolvimento na Amazônia, mas o que ela espera é denunciar os males provocados pelo atual modelo político e econômico, posicionando-se simbolicamente contra uma situação que considera de “caos ambiental e social” e coloca em risco a área com a maior biodiversidade do mundo.
DE ACORDO COM O JORNAL L’OSSERVATORE ROMANO, ÓRGÃO OFICIAL DO VATICANO, A IGREJA CATÓLICA BUSCA SE POSICIONAR SIMBOLICAMENTE COM A CONVOCAÇÃO DO SÍNODO DA AMAZÔNIA (FOTO: MAZUR/CATHOLICNEWS.ORG.UK)
O documento preparatório do sínodo, produzido após consultas a mais de 80 mil pessoas que vivem nas comunidades amazônicas dos nove países e que servirá de guia das discussões, antecipa o tom crítico que virá da Santa Sé nas próximas semanas. O texto afirma que “a violência, o caos e a corrupção” reinam na Amazônia e não poupa nem mesmo o passado da própria Igreja, reconhecendo que ela foi cúmplice de crimes durante a ocupação da região.
“A destruição múltipla da vida humana e ambiental, as enfermidades e a contaminação de rios e terras, o abate e a queima de árvores, a perda maciça da biodiversidade, o desaparecimento de espécies, constituem uma realidade crua que interpela todos nós”, ressalta o “Instrumentum Laboris”, que, dividido em três partes, tem um total de 147 tópicos.
Como reconhece o Vaticano, há “muito em jogo” na Amazônia, onde vivem cerca de 30 milhões de pessoas, por isso a necessidade de escutar as aspirações e os “gritos” das comunidades locais, conforme ressaltaram nos últimos meses o papa e os muitos bispos e padres envolvidos na organização.
Em maio de 2015, pouco mais de dois anos depois de eleito, Bergoglio divulgou uma carta encíclica (“Laudato Si”) em que deixava claro sua preocupação com o meio ambiente. Ali ele lançou as bases do seu discurso contra as monoculturas e a ambição empresarial que destrói florestas. Ele menciona a Amazônia na carta (como também regiões da África) e pondera que há “propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais”.
Ainda antes da ascensão de políticos negacionistas do aquecimento global, o pontífice vaticinava: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas”.
O documento foi considerado um importante divisor no mundo católico, conforme ressalta o veterano vaticanista Marco Politi. Pela primeira vez, o Vaticano expressou que a ecologia é fundamental na fé cristã e expôs diretrizes para os fiéis sobre a proteção da natureza. “O papa deixou claro que há uma relação intrínseca entre a degradação ambiental e a degradação social. O mesmo que destrói uma destrói a outra”, ressalta Politi.
O subtítulo da carta encíclica de 2015, “sobre o cuidado da casa comum”, dará o tom das discussões em Roma no próximo mês.
Ref.: https://www.cartacapital.com.br/
Ocorreu um erro de reconhecimento de sua tela. Atualize a página.